Lembranças

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Sentada em uma das refinadas cadeiras de madeira que compõe o jogo da sala de jantar, Rosalie se remexe como se estivesse com coceira. Não é o local mais confortável e ela sequer se preocupa muito com isso, mas é ali que aprecia estudar, enquanto existe algum barulho ou cheiro gostoso vindos da cozinha logo ao lado.

A claridade do sol que entra pelas janelas é aconchegante e permite que uma pequena fresta possa ser aberta para que o ar puro e gelado renove o ambiente. O extenso recinto comporta uma grande mesa de madeira que dificilmente está lotada de pessoas, salvo em datas extremamente especiais que raramente são comemoradas. O móvel, que suporta doze cadeiras, está inserido bem ao centro do ambiente, e sobre ele sempre estão presentes dois vasos de flores em cristal que acolhem tulipas amarelas, além de um castiçal em prata carregado de velas brancas que nunca são acesas.

Entre as duas janelas balcão está um longo buffet em madeira igual à da mesa. Acima dele ficam objetos antigos e a última escultura criada por Marie antes de falecer. Na parede está instalado um quadro retangular que retrata a antiga Glasgow. O presente, dado pelo pai de Marie à filha antes de viajar para o Canadá, foi o último antes dele nunca mais enviar notícias e desaparecer.

O andar leve e o passar das mãos pelos cabelos escuros veio antes que chegasse até perto da porta, onde resolveu ficar escorada por alguns instantes sem querer sem vista. Aquela calmaria e concentração logo foi interrompida, porque Rosalie bateu com o caderno sobre a mesa, na tentativa de chamar a atenção da mais velha. Assustada com a colisão despropositada, Cathy olhou diretamente para a menina, que a encara seriamente demonstrando não estar confortável.

A presença da mesma já havia incomodado a criança noutras vezes. Insistente em implicar com a cuidadora, acaba fugindo sempre que a mesma tenta estabelecer algum contato mais próximo. Catherine constatou nos últimos dias que o comportamento é resultado da falta de convívio com outras pessoas, que não os habituais, e que será indispensável um longo trajeto até que a criança possa aceitá-la como uma amiga.

— Eu posso ajudar se você quiser. — Informou, receosa, já certa de qual seria a resposta.

Balançando a cabeça negativamente, Rosalie volta a observar as folhas do entorno e finge estar lendo algo, apenas porque quer mantê-la distante. É compreensível que haja dessa forma, mas Cathy quer entender o real motivo da conduta, justamente porque Justine e Gavin informaram que Rosalie não costuma ignorar as pessoas ou agir de forma agressiva.

Resolveu insistir mais uma vez e permaneceu escorada na porta. Ao observar os movimentos impacientes da menina, que continua agindo em rebeldia, tentou visualizar melhor a situação. Gosta do jeito de Rosalie, mas aquela rebeldia incompreensível incomoda o próprio coração e causa uma certa dose desmedida de angústia. Sabe que tornar a questionar sobre a necessidade de auxílio pode resultar em maior retração, porém foi exatamente o que fez. Voltou a ponderar, porque quer que a menina entenda que sempre estará ali para quando precisar.

— Se precisar, me chame. Estarei na cozinha com Justine, pois iremos assar biscoitos. — O termo correto: precisar. Não havia outra palavra para o momento.

biscoitos.

— Serão de quê? — O olhar doce entregou a alegria. Desfazendo-se do lápis, também deixou de lado o papel que estava riscando sem interesse, esperando Catherine retornar para a sala de jantar que já havia deixado para trás.

Os cavalos fazem, os poucos amigos e a boneca Lea são parte dos interesses da menina, assim como os estudos e também alguns pintores, mas essa foi a primeira vez que ouviu manifestar apreço pela culinária. Talvez fosse algo corriqueiro, mas encontrou ali certa animação que não imaginou ser possível.

LiberdadeWhere stories live. Discover now