Capítulo 1: O Conde Desperta

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Um grito estridente cortou a noite.

Lucy despertou com um aperto no coração, a palma suada pressionando o seio. Havia pouca luz penetrando o quarto do casebre. Mesmo com o frio, ela jogou os pés no chão e se aproximou da janela, sentido o nariz gelar perto do vidro fino. Foi um grito, ela teve certeza, mas talvez apenas no meu sonho.

Com o que estivera sonhando antes de despertar?

Com o homem envolto em sombras que ela conhecia apenas na escuridão, o homem que a visitava nos sonhos desde que tinha 13 anos.

Lucy acendeu uma vela e segurando a saia da camisola de algodão, caminhou pelo corredor, os cabelos negros formando ondas ao redor do rosto.

Os pés fizeram algumas tabuas de madeira ranger, mas ao parar na sala de estar e olhar pela janela maior, soube que não precisava temer acordar o resto da família, pois aquilo aconteceria de qualquer jeito.

— O que foi, Lucy? — A voz grave perguntou atrás dela.

Sem desviar o olhar, ela respondeu ao pai:

— O senhor ouviu o grito? Há muitas pessoas lá fora, acho que algo aconteceu.

O pai a empurrou gentilmente para o lado e espiou. Lucy afastou-se, acanhada por estar vendo o grande Sr. Drake Von Schlott de ceroulas. O pai curvou a ponta do bigode entre o dedão e o indicador, sinal de que estava intrigado.

— É melhor eu sair e ver o que houve. Quero que fique aqui.

Ela não argumentaria. Conhecia uma ordem do pai quando a ouvia. Ele apressou-se em ir ao quarto e vestir-se. Lucy voltou para a cama. Estava curiosa, claro, mas o frio era um obstáculo para a fofoca e ela secretamente desejava voltar a dormir.

Para sentir os olhos do homem em você, de novo?

Ela se repreendeu pelo pensamento cheio de luxúria. Ora, que absurdo.

Porém, ao aconchegar-se debaixo dos cobertores e sentir o corpo aninhado no calor dos lençóis, Lucy fitou o teto torto da casa e pensou nele. O homem de negro.

Ela se lembrava bem do primeiro sonho, pois aconteceu na noite em que sangrou pela primeira vez. Não foi um sonho de paixão. Ela caminhava nua pela Floresta de Upyr, em meio a névoa. Sabia que estava sendo observada, mas não conseguia pensar em nada que não fosse encontrar suas roupas. Ela parava de andar e ouvia um galho estalar atrás de si. Ao virar, via o homem vestido com o paletó negro, uma capa elegante cobrindo seus ombros e acariciando as plantas no chão. Assim que o viu, Lucy sentiu o pulsar entre suas coxas e teve desejo pela primeira vez na vida. Ao acordar, envergonhada, sentiu uma onda de cólica e a umidade nas coxas. À luz da vela ela viu os dedos molhados de sangue. Desde então, e especialmente agora que dormia sozinha num dos três quartos da casa, o homem a visitava em sonhos pelo menos uma vez por semana.

Se ela fechasse os olhos agora, ele viria de novo?

***

— Acorda, Lucy! Alguém morreu!

Ela sentiu as mãos pequenas do irmão, Adam, nas suas pernas. Ela gemeu, mas esfregou o rosto e abriu os olhos. Um raio pálido de sol fez com que tivesse que erguer o braço para se proteger da luz.

— Como assim, alguém morreu? O Sr. Ness, aposto. Já estava na hora.

Mas Adam circulou a cama, os olhos arregalados:

— Não! Você não entende! — e então baixou a voz e fez um C com a mão — Uma moça foi assassinada ontem à noite.

O grito! Lucy cobriu a própria boca. Então é isso que aconteceu.

— Adam, como você sabe?

— O pai está lá fora conversando com os outros aldeões — o menino estava preocupado — ela...

Ele não conseguiu terminar, pois naquele momento a mãe abriu a porta. — Ainda de camisola? Ora, Lucy, levante logo e arrume-se!

— Perdão, senhora.

A mãe afastou-se, resmungando que mal acordara e já estava cansada.

Adam saiu correndo atrás dela para comer o mingau do café-da-manhã, que já fervia no fogão e soltava um cheiro adocicado e enjoativo pela casa. Lucy lavou o rosto e a boca num vasilhame e prendeu os longos cabelos, que captavam a luz do sol e brilhavam negros como as penas de um corvo. Ao retirar a camisola, parou em frente ao espelho enferrujado e com o rosto enrubescido, analisou o corpo. Ela tinha a pele leitosa e seios pontudos, que terminavam em mamilos pequenos e avermelhados. Com os dedos trêmulos ela tocou o triângulo de pelos negros. Pensou nele mais uma vez, o homem dos seus sonhos. Então cobriu-se rapidamente num vestido caseiro cor de açafrão, calçou-se e saiu, ignorando as ordens da mãe para ajudar na cozinha.

***


Do lado de fora, mais confusão do que o usual. O sol não era o suficiente para alegrar a aldeia acinzentada, as pessoas em vestes escuras e as crianças sujas que corriam atrás das outras. Galinhas passeavam pela terra, alheias a multidão que havia se reunido em frente ao templo. Lucy notou os ramos da planta Redweed, consagrada ao deus das almas, Rhyag. A planta era pendurada nas portas das casas dos aldeões quando um jovem morria, em sinal de respeito, mas também para ajudar a alma a encontrar seu caminho na escuridão, para o mundo dos mortos. O sacerdote estava ao lado do pai de Lucy, que agora levantava os braços e bradava para que as pessoas se calassem.

— Parem com os boatos, por favor! — ele disse, mantendo o tom de comando que era tão típico dele — o conselho da cidade irá se reunir e vamos descobrir o que aconteceu com nossa querida Annie Whitechapel. Mas até chegarmos a um consenso, eu peço que vocês parem de especular!

Uma mulher idosa ao lado de Lucy, cheirando a repolho, resmungou:

— Inúteis, já deveriam estar acendendo as tochas contra a Criatura.

Houve um rebuliço, então o sacerdote deu um passo à frente:

— Eu peço que vocês voltem para as suas casas e orem pela alma da nossa menina, que agora pertence a Thana, deusa da Terra Além da Vida. Deixem que o conselho tome a decisão mais prudente. Obrigado.

Eles deveriam se dispersar com o obrigado, mas a turba continuou ali, conversando entre si, alguns espantados, outros resignados. Lucy observou que o sacerdote, o pai e outro homem poderoso, o Sr. Billings, debatiam algo com vozes baixas. Uma moça com quem Lucy compartilhava as aulas de letras veio ao seu encontro.

— Bom dia, Irma.

— Lucy! Sinto muito por Annie.

— Eu também. O que houve?

Irma apertou o braço de Lucy e a conduziu para longe da multidão.

— Acharam Annie morta na cama na madrugada — ela sussurrou com bafo de sopa — ...nua!

Lucy partiu os lábios. Sua mente evocou imagens de um homem a pular a janela do quarto da pobre Annie, de apenas treze anos, e violenta-la. Compreendia agora o nervosismo da aldeia. Não queria nem ver o que os homens fariam se colocassem as mãos no violador, pois aquele era um tipo de crime raríssimo e considerado o mais grave de todos naquela região. Irma continuou, em tom de fofoca, o que incomodou um pouco a Lucy.

— Algumas pessoas dizem que foi um bicho, porque ela foi mordida.

— Mordida?

— Shh... isso, mordida.

Elas deram de cara com a mãe de Lucy.

— Irma, vá prestar suas condolências à Sra. Whitechapel — ela falou num tom ríspido — Lucy, para casa, imediatamente!

Prometida para o CondeOnde histórias criam vida. Descubra agora