Capítulo 1

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Atualmente

Estou caminhando de volta para casa como faço todos os dias após o trabalho. Ela fica no limite do bairro, mais afastada e próxima à mata que sempre amei, permitindo a minha tão apreciada privacidade, mas ainda dentro das facilidades do centro.

Whitehorse é uma cidade tranquila do Canadá, as margens do rio Yukon, o que a torna um lugar maravilhoso de se viver, porém, ultimamente, tenho tido uma sensação estranha ao andar pelas ruas.

Faço o mesmo caminho diariamente. Os moradores e comerciantes locais estão familiarizados comigo, me veem todos os dias e, muitos deles, até me cumprimentam ao ver-me passar; mas sinto a sombra de alguém me acompanhar como se eu estivesse sendo seguida e observada.

Respiro fundo e absorvo o ar frio do anoitecer na tentativa em vão de me acalmar. Olho a minha volta buscando o motivo ou algo que justifique tal sensação e não encontro nada, então acelero os meus passos, mas sempre olhando sobre os ombros para ver se alguém se aproxima.

Finalmente chego em casa e relaxo ao soltar o peso do meu corpo sobre a porta que acabo de fechar. Permaneço assim por alguns instantes, apenas tentando controlar as batidas do meu coração; e quando acredito que estou conseguindo me acalmar, algo ou alguém bate bruscamente na minha porta, com urgência, como se quisesse derrubá-la coso eu demore a abri-la.

— Liz — minha melhor amiga e vizinha chama ansiosamente do outro lado —, você chegou?

— Minha nossa, Abby! — digo alarmada, com a mão no peito temendo um ataque cardíaco. — O que foi que aconteceu?

— É a Cupcake... — ela fala choramingando e posso ver as lágrimas em seus olhos ao abrir a porta — Está acontecendo de novo.

— Abby — tento explicar pela milésima vez —, você precisa levá-la ao médico.

— Venha, Liz — ela implora —, você sabe o que pode fazer.

E sem me dar escolha, ela me puxa pela mão e me arrasta dali, levando-me em direção a sua casa, onde está a Cupcake: uma cadela da raça Husky Siberiano, docemente nomeada por sua filha Nadia, de 8 anos.

Ao entrarmos, a pobre cadela está deitada no chão da sala, visivelmente abatida.

— Desde que horas ela está em crise? — pergunto chateada ao vê-la sofrendo.

— Há quase meia hora — Nadia responde ao se aproximar. — Você vai ajudá-la, não vai? — Seus olhos inocentes buscam os meus em expectativa, como se eu pudesse simplesmente fazer algum tipo de milagre.

— Eu não sei — desvio meus olhos da menina e busco por Cupcake —, vou tentar — digo sincera e torcendo para conseguir aliviar o seu sofrimento.

Me agacho ao lado do animal que vi nascer e crescer, e gentilmente ponho as minhas mãos sobre o seu peito ofegante. Sua respiração irregular, aos poucos, vai ganhando um ritmo compassado, e cerca de cinco minutos depois, ela consegue se levantar. A cadela sai da sala, seguida por Nadia, como se nada tivesse acontecido, me deixando extasiada e de queixo caído.

— Eu sabia! — Abby comemora radiante.

— Eu não entendo... — digo simplesmente enquanto olho para as minhas mãos.

— Tem coisas que não precisamos compreender Liz, apenas aceitar e agradecer — Abby fala carinhosamente ao se sentar ao meu lado no chão da sala. — Você tem um dom, uma relação com os animais que eu jamais irei compreender, mas que agradeço todos os dias por ter e poder ajudar a Cup.

Permaneço em silêncio, absorvendo as palavras da minha amiga.

Sempre fui muito ligada aos bichos, desde pequena. Uma ligação difícil de compreender e que por isso, na maioria das vezes, causou estranheza, medo e até repulsa em certas pessoas que conviveram comigo, principalmente as crianças do orfanato onde fui criada e deixada com apenas alguns dias de vida. Passei então, a esconder e reprimir, assim evitei os olhares estranhos, os falatórios e parece que todos foram esquecendo com o tempo, menos a Abby.

— Mesmo assim, você não pode ignorar — digo séria —, precisa levá-la ao veterinário e não apenas confiar em algo que não conhecemos, não sabemos o que é e nem mesmo se é real!

— Tudo bem — ela soa cansada —, amanhã nós marcamos uma consulta com o Dr. Pascal — ela olha bem nos meus olhos, pronta para dizer algo sério —, mas você também precisa entender que isso — ela abre os braços e mostra a própria sala com intenção de falar sobre o que acabou de acontecer — é real!

— Você fantasia demais, Abby — digo ao me levantar do chão. Sinto um pouco de tontura no processo e ela me ampara.

— Eu que fantasio ou você que é teimosa e não quer dar o braço a torcer? — ela me abraça com carinho — Teimosa ou não, muito obrigada, minha amiga.

— Deixa de bobagens — me afasto gentilmente dela, sem querer incentivar as suas ilusões e crendices. — Deixa-me ir embora, estou cansada e ainda preciso pôr a roupa para lavar antes de dormir.

— Está bem, pode fugir do assunto — Abby me provoca —, mas não pode fugir de si mesma.

— Boa noite, Abby — digo antes de sair.

— Boa noite, Liz. — Ela responde — O dia que aceitar o seu dom, você será capaz de coisas incríveis. — Ela sussurra para si mesma antes de fechar a porta, mas ainda sim pude ouvir.



Setenta e dois minutos (DEGUSTAÇÂO)Where stories live. Discover now