O que é ele?

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Por um momento supliquei. Seu rosto torcido em uma confusão com uma tristeza misturada com algo que não consegui decifrar acabaram me fazendo chorar ainda mais, chegando à conclusão de que deveria continuar falando para que ela não piorasse a feição que estava começando a me assustar, começando a me lembrar dele.

— Ele não era como um bicho papão, mamãe. Ele era alto e feio — Ressaltei, como se fosse a única verdade da frase. — Mas ele me fez um carinho. Eu fechei meus olhos e dormi. Ele não me assustou, não, não.

E as primeiras lágrimas derramaram pelo seu rosto quase que laranja, uma maldição perto de quando estava sorrindo. Sem fazer sons, menos assustada, ela continuou assim até fazer o que, secretamente, eu desejava escutar.

— Eu estou aqui.

Suas palavras ecoaram e chegaram até a mim causando um efeito assustador, como se tivesse passado parte da insegurança dela para mim, uma insegurança que nunca pensei que sentiria após ter me livrado daquilo que jurou tirar o que amo da terra.

Foi quando eu acordei e encarei o teto sem entender o que tinha acabado de sonhar, pequenos fragmentos de lembrança tinham se esvaído como a luz que deixou alguns dos planetas colados no teto do meu quarto. Algumas estrelas ainda iluminavam, enquanto outras estavam bem apagadinhas. Estiquei meu braço para a cômoda e puxei uma lanterna pequena que ganhei do meu pai — estive maluca por uma lanterna — e apontei para os planetas, que iluminaram rapidamente. É como se eu pudesse fazer eles voltarem a existir por um tempo, não gosto de ver eles apagados; sabe se lá qual a necessidade de quem mora lá.

Mas isso não importa agora, o sono que me fez descansar o braço na cama cochichou no meu ouvido

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Mas isso não importa agora, o sono que me fez descansar o braço na cama cochichou no meu ouvido. Uma onda de ar fresco do ventilador bateu no meu rosto e não tive mais forças, deixei a lanterna junto de mim, com muita preguiça de botar no lugar. Eu poderia acender os planetas de novo durante a madrugada. Mas minha mente parou de pensar nos planetas quando foi interrompida por um estalar.

Os arredores pareciam ter ficado mais silenciosos do que o normal, meus sentidos pareciam ter melhorado. Com os olhos fechados, focada apenas no som do quarto, registrei todas as pequenas coisas que estavam acontecendo; logo uma chuva começou, as gotas de água bateram violentamente contra a janela. O estalar foi a gota da chuva que anuncia a chegada de suas irmãs. Por que essa chuva me faz ter ainda mais vontade de dormir?

Tek.

O barulho aconteceu de novo.

— Mãe? — Saiu da minha boca sem querer, mas continuei com os olhos fechados.

Fui respondida com o silêncio do quarto e as gotas de chuva batendo na janela. Foi quando o terceiro barulho aconteceu e tive certeza que era de dentro do quarto, como uma esbarrada no armário que provocou a abertura dele.

— MÃE?! — Disse mais alto, agora que escutei um outro estalo, e mais próximo de mim.

O que me restou foi abrir os olhos. Por um momento o vento do ventilador se tornou frio e cortante e me senti extremamente mal, como se questionasse minha existência e decidisse que não sou importante. Alguém já me disse que era questão de tempo até que percebesse que sou uma criança sem dom, alguém que não seria escolhida para estar na frente... Acho que tem razão, não há motivos pra eu continuar tentando.

Eu abri os olhos quase que numa rendição, e então percebi que estou deitada na minha cama e não recebendo sermões na frente de outras quinze crianças. Me resta passar a luz da lanterna nos planetas já que os pensamentos não me deixam dormir. Agora apenas dois deles estão em intenso brilho, mas direcionei o feixe de luz para o armário, cismada. Não tem nada lá. E está completamente fechado.

Voltei a atenção e a lanterna para os planetas, eles estavam apagados agora, todos. Não consigo nem imaginar em qual parte eles estão e posso jurar que eles não estão mais ali, mas não vou, posso estar sonhando de novo. Respirei fundo, olhei em volta; apesar do quarto estar bem escuro, enxerguei minhas bonecas no canto do quarto, e do outro, a cama do gato. Ele não estava ali. Talvez esteja mesmo sonhando.

— Eu preciso dormir. — Disse a mim mesma.

Mas meu coração pediu, eu não posso deixar de acender os planetas e ajudar as crianças que moram lá. Procurei a lanterna com as mãos no colchão e encontrei.

Apontei a lanterna para o teto, e além dos planetas que fui iluminando um por um, dois olhos brilhosos foram iluminados sem minha ajuda, como se tivessem acabado de abrir. Junto deles, meu interior se contorceu, vi que não era Solomon pendurado. De jeito algum.

"Foi quando eu vi ele, mamãe."

O gato miou alto e minha atenção virou para a cama dele

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O gato miou alto e minha atenção virou para a cama dele. Ele não estava ali, mas seu miado se arrastava na minha mente, me aterrorizando como nunca fez. Por um momento vi sua silhueta correndo para fora do quarto. Voltei meu olhar para o teto, e aquilo se jogou sobre mim. Aquilo que eu não sabia o que era, e que por um instante estava a centímetros de meu corpo.

Não tinha dois braços, como um extra que saia pelo pescoço. Em um movimento rápido de susto, joguei a lanterna no chão, mas ainda conseguia enxergar os longos dentes que estavam a dez centímetros do meu rosto. Tentei gritar, som algum saiu de minha boca. Tentei me mexer, estímulo nenhum aconteceu. Tentei me manter acordada, mas meus olhos estavam se fechando. Eu não vou dormir, eu não vou!

O que me mantém com vontade de continuar encarando essa criatura mesmo como se estivesse prestes a desmaiar? O que... me faz...

— Annie?

A voz chegou até a mim me fazendo inspirar o mais forte que já consegui. Sentei com o susto num movimento para a frente parecido com um empurrão. Senti as luzes acesas me fazendo brilhar. E mesmo com a vista sensível, consegui ver minha mãe parada à porta com Solomon no meio de suas pernas. Me apertei, fazendo questão de mexer cada dedo que estava paraliso. Me sinto quente, me sinto viva. O clima tropical voltou. O ventilador parece nunca ter me incomodado antes.

— Mamãe? — Disse desnorteada, procurando uma resposta para o que acabou de acontecer. 

E com o coração acelerado.

A feição da mamãe não estava assustada, embora tenha notado o desespero na minha. Sem falar nada, a sua sombra pegou a lanterna do chão e colocou de volta na cômoda.

— Foi um pesadelo — Ela disse se sentando na cama para me dar um beijinho. 

Fingi ter ficado confortada; não foi um pesadelo, pensei com certeza, e temi pelo momento em que minha mãe sairia do quarto. Pela primeira vez me senti ameaçada por algo que não acredito. Aquilo. Os seus dentes. Não são como os de Cespuglio-oh, que são igualmente grandes, nem como os do Shiny-eyes.

Desejei, de verdade, ter visto os dois juntos no lugar daquele. 

— Foi só um pesadelo.

Pensei mais no que seria aquilo e como desapareceu tão rápido. A luz. Como um sopro de esperança, a luz chegou até meus olhos e me libertou do sentimento frio. Do sentimento...

Que já senti sozinha há muito tempo. 

— Eu posso dormir com você? — Perguntei.

Ela não disse nada, soltou um riso bobo e concordou com a cabeça. Tenho certeza de que estarei segura com a mamãe. Mas não foi a única certeza da noite. 

Eu tenho certeza que não foi só um pesadelo.

"Eu sei o que eu vi, mamãe.
Daria de tudo pra não ver de novo." 

Acorde: Annie (Livro 1 de 3)Where stories live. Discover now