Capítulo XIII

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Sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Manhã, 08h01

Na manhã seguinte, a neblina se abateu sobre as copas das árvores e serpenteou a rua como se ela a pertencesse. Harley, que acordar bem antes do que Eldric, vítima de uma dor de cabeça que ela sabia que não seria passageira, observava o exterior com os braços cruzados, os olhos atentos à camada branca extra naquela vista que misturava o bucolismo e o urbano. O Homem e a Natureza.

Apesar da dor em suas têmporas latejantes, a detetive conseguia raciocinar razoavelmente bem, e a falta de piedade em todos os assassinatos a fez se perguntar: que tipo de Deus daria à sua criação uma natureza tão cruel? Os religiosos explicariam que o Diabo os teria corrompido, mas... parando para analisar, Harley sabia que, na verdade, o único momento em que o homem não fora mal era exatamente quando ele nada sabia, quando seus lábios ainda não haviam tocado a fruta da verdade.

Mas valia a pena esse sacrifício? Viver sem saber, sem ter consciência do que faz...? Sem saber a verdade, como reconhecer o seu certo e o errado?

Eram perguntas demais para o início da manhã e, ainda que quisesse respondê-las, o corpo de Cleanwater sabia que precisava resguardar mesmo a mais ínfima energia para o decorrer do dia. Afinal, não fora apenas a dor de cabeça que a acordou, mas também o tocar de seu celular, o qual a mulher atendeu rapidamente para não acordar Heartland, que respirava denso contra o travesseiro que agarrou.

— Cleanwater — atendeu com a voz sonolenta.

— Aqui é o delegado Lover — apresentou-se o homem do outro lado. — Sei que está cedo, mas creio que vocês já estejam de pé trabalhando na investigação.

Harley obviamente percebeu que naquela frase havia uma pergunta subentendida, a qual ela não fez questão de responder, retendo-se a perguntar:

— O que quer?

O homem pigarreou e Harley percebeu, com um leve movimento das costas, que talvez estivesse acordando Eldric, mesmo que falasse em sussurros. Assim, ela correu para a pia do banheiro e encostou a porta atrás de si.

— A questão não sou eu, Cleanwater, mas sim Elena. — A voz dele escapou fria, tal qual o ar do lado de fora, que encontrava seu caminho para dentro do quarto por entre a fresta da janela. — Ela está chamando por você.

A detetive franziu o cenho.

— Então por que não é ela a me perturbar logo cedo? — resmungou estreitando o olhar para a figura que se apresentava diante o espelho; cabelos amassados, os lábios secos, sem batom algum, mas desejando um cigarro, olheiras e sobrancelha despenteadas. Ela teve de admitir: já esteve em dias melhores.

— Ela está abalada pela morte do filho, detetive, espero que entenda isso — explicou em um tom severo que fez as sobrancelhas de Harley se alinharem. — Recebemos ontem na delegacia a confirmação e eu fui avisá-la.

— Tudo bem — anuiu a mulher. — Eu verei o que posso fazer.

— O que você pode fazer é voltar! — insistiu e ela lhe lançou uma sobrancelha erguida, apesar de Lenny não estar diante dela.

— Como eu disse, verei o que posso fazer. — Então Harley encerrou a chamada, abriu a torneira e molhou o rosto, respirando fundo, apoiando-se na pia logo em seguida.

Sim, ela teria de voltar para Painswick, mas o fato de ela estar olhando para além da janela do quarto, agora, trocando o peso do corpo entre as pernas, não adivinha da ligação, mas sim da mensagem que recebera minutos depois, de Felícia, com o endereço de Dariel Adams. O homem morava na Cornualha, e Harley conseguia quase ouvir o arrebentar da maré contra a costa, o modo como o sol surgia por detrás dele e o iluminava em diferentes tons durante todo o dia, a maresia grudando na pele, as garças grasnando alto e algumas crianças rindo conforme corriam pela praia.

Passado Perverso (DEGUSTAÇÃO)Where stories live. Discover now