Capítulo II

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Sexta-feira, 05 de setembro de 2014

Madrugada, 03h21

Uma nuvem frágil de fumaça escapou por entre os lábios ressecados da mulher. Harley recostou-se sobre a borda da janela de se quarto num hotel onde Elena havia preparado uma espécie de boas-vindas bizarro, com uma cesta de frutas em cima da cama e até mesmo uma pequena garrafa de espumante que costuma ser dada gratuitamente em feiras de culinária. Não havia motivo para boas-vindas. Não havia motivo para celebrar que ela estava ali, afinal, o único motivo de sua presença era a incompetência da polícia em encontrar um assassino. Porra, uma criança fora morta. Encontrada pela própria mãe...

A detetive tragou mais uma vez.

O cigarro inundou seu corpo com calor e nicotina.

Sim. Um pobre garotinho chamado Lucas perdera sua vida e, ainda assim, olha como todos dormem tranquilos em suas casas confortáveis demais para que se preocupem com algo além de seu mundinho patético. A cada linha de pensamento, seu corpo parecia repelir ainda mais a simples ideia de permanecer ali. A cada tragada. A cada respirar. Sua própria mente lhe dava pensamentos cruéis para ver se ela mudava de ideia.

Mas Harley precisava de dinheiro e, embora muitos fossem preferir pensar que estavam trabalhando para o bem daquelas crianças, ela preferia manter-se à sua realidade.

Assim, ela tragou uma última vez o velho cigarro, que tamborilava por entre seu indicador e anelar, antes de arremessa-lo pela varanda, girando em seus calcanhares, deixando que a luz fraca do luar apático banhasse seus ombros, desnudos pela camisola perolada que tinha um decote tão profundo em suas costas que a mulher sentia como se nada usasse. Ela enfiou-se entre os lençóis e afundou a cabeça no travesseiro, sentindo alguns fios de seu cabelo caindo os olhos. O trabalho nem havia começado, mas ela já desejava que estivesse acabado.

...

Manhã, 06h31

Os tons cinzentos e apáticos que a acolheram pela manhã de nada serviram para aumentar seus ânimos. Ela escorregou seu corpo pela lateral da cama, vestiu-se o mais desanimadamente possível, calçando seus saltos com uma preguiça louvável, e saindo pela porta com um rebolado que despertou o balconista enquanto ela atravessava as longas portas de vidro que eram a entrada.

Com o mapa que recebera na delegacia, Harley caminhou até a caixa de areia onde o garoto fora encontrado. Era uma enorme praça quadrangular, feita de cimento, com brinquedos perdidos pelos cantos, como uma gangorra quebrada ou então balanços enferrujados, que seriam vítimas dos corpos de adolescentes pesados demais para se sentarem neles, mas que mesmo assim o farão. O sol parecia palidamente tímido, saindo por detrás do topo das árvores frondosas e das construções bucólicas, iluminando-se em faixas que banhavam parcelas da cidade, mas que fizeram questão de iluminar a detetive durante todo seu trajeto, como se apontassem que ela estava ali. Que era ela o elemento novo em meio ao ordinário, com seu vestido azul-marinho colado ao corpo, braços cruzados e olhos atentos à caixa de areia no centro.

Havia bancos ao arredor, onde as mães sentavam-se para assistir seus filhos brincarem "sozinhos". Harley achava isso patético, mas não poderia culpar as mulheres que tinham apreço por seus filhos. Ela simplesmente nunca conhecera algo assim.

Agora, a detetive caminhou lentamente até um dos bancos de madeira, mal pintados e totalmente precisando de uma reforma, que rangeu com o seu sentar. Ela dobrou os joelhos e os olhos pareceram enxergar cada grão bege que tinha naquela figura quadrada. Uma mistura de bile e náusea subiu pelo seu esôfago e amargou sua boca. Era como se ela mesma estivesse vendo a mão do garoto exposta ao vento, o osso partido e os dedos gelados.

Passado Perverso (DEGUSTAÇÃO)Where stories live. Discover now