Prólogo - Areia e Morte

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Um menininho corria rapidamente, os cabelos castanhos jogados para trás pelo vento, bagunçando seu corte à escovinha. Com toda a euforia de uma brincadeira, o garoto corria pelo entorno de uma caixa de areia maior do que seu quintal, ele diria. Havia duas meninas no canto esquerdo da caixa, tranças enfeitadas de laços caindo sobre suas costas cobertas por vestidos de aparência cara, recheados de flores, verdes e amarelas. Ele parou. Mãos nos joelhos. Peito arfando. O ácido de seu estômago quase saindo de sua boca enquanto um segundo menino, um ano mais velho, saltava sobre ele, batendo-lhe contra a cabeça enquanto gritava:

— Está com você! — berrou o outro antes de disparar a correr, o coração batendo forte em seu peito, excitado pela ideia de estar ganhando novamente.

Como todas as mães solteiras daquela cidade, Mary Yard mantinha as mãos no colo, os olhos baixos fitando os próprios pés, não ousando erguer o olhar por nada. Seu coração estava partido. Por um homem? Ela desejava que fosse. A dor seria mais fácil de ser carregada. Era muito pior. A dor que rompia seu peito, rasgando-o em dois, destruindo cada fibra de sua pele, era causada pelo desaparecimento de seu filho. Lucas Yard. Um ótimo menino, ela lhe contaria, como se sua concepção de ótimo fosse igual a de todos os outros. Não era culpa dela, é claro. Todas as mães têm uma pré-disposição a achar que seus filhos são ótimos.

Seu vestido marrom acaba por lhe envelhecer doze anos, ressaltando suas rugas que acompanhavam um sorriso que a dias não ousava aparecer, como se suas forças tivessem se extinguido. Quem passasse diante dela pensaria que era uma mulher que recusava a aceitar a idade, mas ninguém teria a coragem de falar tal ofensa de frente para ela.

Os meninos que corriam diante da solteirona apenas apertavam ainda mais seu coração. Lucas adorava brincar ali, a caixa de areia sendo seu local predileto para elaborar suas histórias de super-heróis, no qual um mero boneco de plástico tinha a capacidade de ganhar vida e salvar uma das garotas que não lhe dava a mínima atenção.

Um dia antes de seu desaparecimento, eles foram ali, se divertiram durante a tarde, Lucas olhando por sobre o ombro, tendo certeza de que sua mãe estava tomando conta dele, protegendo-o, dando pequenos acenos com a mão direita e um sorriso no rosto rechonchudo.

Agora, ela sentia que havia falhado com ele. Mary tinha certeza disso, pois essa falha a esfaqueava todas as manhãs, quando se obrigava a sentar ali, descansando da última noite de procura pela floresta a alguns quilômetros ao sul do centro de Painswick. Ela lhe negaria, se perguntasse, mas suas esperanças estavam esvaecendo de forma tão gélida quanto o vento que balançava seus cabelos castanhos-dourado.

A polícia lhe disse que casos de desaparecimento de crianças eram tristemente comuns em cidades grandes.

Mas aquela não era uma delas.

De fato, afirmar-lhe-iam que iriam encontrá-lo.

Depois chegariam tarde da noite, com seus quepes segurados pelas mãos que suam a frio e lhe diriam que seu filho estava morto, mesmo que seu corpo não tivesse sido encontrado.

Porque é assim que funciona.

Mas ela se recusava a acreditar nisso.

Mary abriu a mão lentamente, sentindo as juntas doloridas de tanto terem esfregado os olhos inchados pelas lágrimas e por tanto terem socado a parede do banheiro, analisando seus dedos endurecidos. Por sorte, não quebrou seus ossos. Mas talvez ela desejasse isso. Talvez ela quisesse sentir uma dor física, que distraísse sua mente em frangalhos, as olheiras quase sempre presentes lembrando-a de seu eterno fracasso materno.

Um grito cortou o ar. O vento parou perante as lágrimas desoladas das crianças que corriam para fora da caixa de areia, tombando sobre o asfalto, ralando seus joelhos, as mãos espalmadas sentindo a textura do chão duro e pavimentado enquanto seus corações batiam numa altura tão alta que chegava a incomodar.

Mary se levantou, as pernas fracas e incertas enquanto o vestido grudava com o vento em sua barriga rechonchuda. Ela caminhou sem pressa, os pés cobertos por sapatos cinza-chumbo, que raspavam com seu andar morto. Ela sentiu seus músculos contraírem enquanto via um garotinho abaixado em frente ao que todos correram espantados, curioso, seus cabelos castanhos obstruindo a vista da mulher.

— Jeromy! — gritou uma mãe exasperada, apanhando seu filho, arrancando-o de dentro da caixa de areia enquanto corria para longe. Mary virou o rosto, entretida com o olhar encantado do menino, curioso por si só. Ele colocou a mão na boca apenas para, em seguida, tirá-la, o vento frio fazendo-o se encolher no pescoço da mãe enquanto apontava para Mary, como se a julgasse.

Com um gosto metálico na boca, a Sra. Yard virou-se de frente para a caixa de areia, colocando seu pé sobre a textura macia, tão diferente da do cimento, sentindo seu afundar, deixando sua marca. Ela se ajoelhou, os grãos beges brincando com seus joelhos, voando para dentro de suas coxas conforme o vento se intensificava.

— Não... — As lágrimas romperam em seus olhos castanhos, rolando livremente por seu rosto avermelhado enquanto a voz cortava sua garganta em tiras. — Não...

Por mais que negasse, Mary já sabia de quem era aquela mão. Pálida. Dedos delicados. Frios. Mortos. O pulso começava a se revelar conforme o vento batia contra a areia. O braço logo surgiu quando ela cavoucou o amontoado bege, os dedos como garras, dilacerando algo que nunca estivera unido, sentindo-o fluindo pelo meio de seus dedos como se estes fossem arados.

Mary caiu para trás, as últimas esperanças de seu coração destruindo-se conforme a palidez da pele morta assombrava seus olhos, os lábios trêmulos franzindo-se ao sussurrar por entre um momento de assombro:

— Lucas...



*Aaaaa é tão bom estar de volta!!! Por hoje é só o prólogo, e as postagens serão feitas todas terças e quintas, a não ser que atinjamos as metas de leitura antes disso!!! A meta de hoje é de 60 leituras, então compartilhem, divulguem e não se esqueçam de deixar um voto se gostaram!!!

*Passado Perverso é um livro denso e macabro, então já preparem os corações.

Passado Perverso (DEGUSTAÇÃO)Where stories live. Discover now