O Cavaleiro de Jaraguá - Jaraguá (GO)

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A medicina evolui constantemente, incorporando descobertas e corrigindo equívocos históricos. Durante muito tempo, por exemplo, cirurgiões se recusavam a lavar as mãos antes de operar seus pacientes. A ideia era que os doutores da medicina eram "cavalheiros". Logo, suas mãos jamais seriam impuras. Hoje em dia, isso parece absurdo e arrogante. Mas, em 1846, quando o médico austríaco Ignaz Philipp Semmelweiss propôs que seus colegas adotassem o procedimento de higienização das próprias mãos, sua ideia foi recebida com escárnio e indignação. Semmelweiss morreu no ostracismo por ter insinuado que nossos nobres doutores causavam doenças. Na época, a teoria de germes ainda estava distante e a existência de organismos microscópicos era impensável.

Mas assim caminha a ciência, a passos lentos, contrária às tradições, lutando contra o geralmente equivocado senso comum.

Se nos grandes centros já é difícil confrontar preconceitos, as comunidades mais afastadas são ainda menos propensas ao progresso científico.

Na cidade de Jaraguá, no interior de Goiás, a população convive ainda hoje com que, acredita-se seja o resultado dessa resistência ao novo.

Em 1964, Luiz Alberto Pontes se mudou para Jaraguá. O pastor fora designado para erguer o templo da sua congregação na cidade. A casa, construída às pressas, teve a maior parte do acabamento finalizada pelo próprio Luiz, que encarregou-se de toda a pintura do casarão. Na época, era a maior residência da Rua das Flores. A ampla sala de estar, aos domingos, acomodava os primeiros fieis dispostos a ouvir os sermões do pastor Luiz.

A cada culto, mais seguidores se uniam à congregação. A família do pastor rapidamente se tornou um modelo na cidade. A esposa, Lara, era liderança e inspiração entre as mães. E as duas lindas filhas Edite e Sara abrilhantavam os louvores com suas vozes angelicais.

Numa manhã, diante do templo lotado, o cântico de louvor foi interrompido bruscamente. Sara, que parecia mais pálida naquele dia, não demonstrava a característica afinação vocal. A menina perdeu a deixa em um cântico e ficou parada no altar, em transe. Edite repetiu a entrada da música ao piano, mas a irmã continuava hipnotizada. Um murmurinho tomou conta do público.

Então, o Pastor notou que a mão da filha tremia. Logo, o tremor chegou ao braço e se alastrou por todo o corpo da pequena Sara. Os olhos se reviraram e a menina foi ao chão, como se atingida por um relâmpago.

Os fieis gritaram e clamaram por misericórdia. Lara correu e abraçou a filha, tentando conter os espasmos. O culto, naquela manhã, terminou antes do previsto.

A chocante cena no culto comoveu a comunidade. Um mutirão de mulheres se revezou em oração pelo pronto reestabelecimento da filha do pastor. Uma quantidade enorme de flores e doces foi presenteada à família.

Sara acordou algumas horas mais tarde, sem qualquer lembrança do ocorrido. A não ser pela sensação de formigamento nas mãos e nos pés, a menina não apresentava febre, dores ou queixas. O que quer que tivesse acontecido, passara. Todos deram graças e a vida na Rua das Flores seguiu seu rumo.

Algumas semanas depois, uma nova crise. Desta vez, Sara interrompera o sermão do pai com um grito de horror. Edite, sentada ao seu lado, sentiu um líquido morno tocar sua perna: era urina. A constatação da incontinência da irmã fez Edite levantar com um outro grito. Por mais que o pastor tentasse acalmar a todos, o perfil supersticioso da população começara a colocar em cheque a reputação do líder da congregação.

Entre o desespero de ver a filha naquela situação e o receio de perder a autoridade de pastor, Luiz sabia que precisava agir rápido.

Sara deixou de participar dos cultos seguintes. Para a congregação, o pastor disse que a filha estava acamada, se recuperando de uma enfermidade. Os fiéis foram compreensivos e buscaram retornar à normalidade.

Numa madrugada, o pastor foi acordado com batidas violentas na porta da casa. Um vizinho, suado, olhos esbugalhados, lutava para conter Sara, que se debatia tentando se soltar das mãos do homem. Para o horror do pai, Sara trajava uma camisola, estava descalça e coberta de sangue.

O vizinho contou que fora acordado pelos gritos do seu gato. Ao chegar ao quintal, encontrou Sara com os dentes cravados no pescoço do felino já sem vida.

Sara precisou ser sedada. Já o vizinho, por mais que o pastor implorasse por discrição, não se esforçou em esconder a história do resto da comunidade.

Depois de cancelar um culto por ausência de fiéis, Luiz usou o que lhe restava de prestígio e convocou todos os membros da igreja para uma reunião. O objetivo era implorar por perdão e compreensão. Obviamente, a filha não estava sã. O pastor pediu orações pela alma de Sara e prometeu que ela não voltaria a andar desacompanhada pela cidade.

Mas, para o horror do pai, agora era Edite quem se debatia no chão, tremendo e salivando em meio à reunião.

Quando um membro de uma família apresenta comportamento errático, pode-se atribuir a culpa à doenças do corpo e da mente. Mas, quando um segundo integrante apresenta os mesmos sintomas, não demora para que a população busque explicações no sobrenatural.

Em pouco tempo, a comunidade começou a se referir à família do pastor como "os malditos". Em uma questão de meses, o pastor e as filhas tornaram-se páreas naquela sociedade. A casa já não recebia mais fiéis. Disposto a continuar com sua missão, Luiz passou a pregar em praça pública, apesar do desinteresse dos transeuntes.

As pessoas passavam apertando o passo, desviando o olhar, enquanto o pastor pregava e sua esposa o acompanhava num acordeom com uma melodia triste como ela. Até o dia em que Lara desabou no meio da praça, convulsionando sobre o instrumento.

A família do pastor tornou-se reclusa. Apenas Luiz ainda era visto comprando mantimentos para a casa no mercado da cidade. Durante a noite, no entanto, filhas e a esposa de Luiz passaram a perambular pelas ruas de Jaraguá. O comportamento agressivo nestes encontros reforçava a teoria de que "maus espíritos" teriam tomado conta da família do pastor. Animais eram encontrados assassinados com brutalidade. Viajantes eram agredidos.

Aos poucos, a Casa da Rua das Flores foi se transformando numa fortaleza. O pastor colocou grades nas portas e janelas, ergueu muros. Mas os membros da família ainda conseguiam fugir vez ou outra.

Luiz passou a usar um cavalo nas buscas noturnas da família fugidia. Na Rua das Flores, o barulho de cascos durante a madrugada era um alerta. Um dos "malditos" havia fugido. Era melhor trancar as portas, até que o galope sumisse com o raiar do dia.

Pouco se sabe do fim de Luiz e sua família. Alguns dizem que se mudaram na calada da noite, deixando tudo para trás. Há quem diga que, tomado pelo desespero, o pastor executou a todas e as enterrou debaixo da casa. Outros acreditam que foram as filhas que mataram o pai e fugiram sem deixar rastros.

Décadas mais tarde, alguns estudos constataram contaminação por chumbo na tinta usada na pintura da casa do pastor.

Como se sabe hoje em dia, tintas à base de chumbo, muito comuns àquela época, sãos altamente tóxicas e podem causar alucinações, agressividade e até crises convulsivas.

Essa possível explicação para o comportamento da família do pastor chegou com quase trinta anos de atraso. Infelizmente, tarde demais.

O que não quer dizer que a ciência teria colocado um fim na tragédia dos "amaldiçoados" da Rua das Flores.

Ainda hoje, as madrugadas silenciosas de Jaraguá costumam ser interrompidas pelo som de um galope que parece surgido do nada. Um galope que ronda a Rua das Flores, em especial a quadra onde a família de Luiz costumava morar.

A recomendação é para que se tranquem portas e janelas, mas já houve corajosos que ousaram confrontar o cavaleiro da Rua das Flores.

Ao ouvirem o galope, estes atrevidos saíram de suas casas e foram em direção ao som, apenas para encontrar a rua deserta e marcas de cascos sobre a rua de chão batido. 

Brasil SombrioWhere stories live. Discover now