O11 - Joaquim

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Caminhava pela cidade em mais um dia ordinário dessa vida tão insossa. Passava pelas mesmas figuras conhecidas da sociedade: o estudante, o engravatado, a charmosa, a relaxada, o desempregado, e as outras personagens que já existem na vida de qualquer um. Nesse dia em especial, reparei uma figura normal, mas incomum: um mendigo. Seria apenas mais um pé rapado, sentado à beira de uma loja, aguardando pelo sentimento de autossatisfação humano em lhe dar uma boa esmola? Poderia ser, mas não era — ou era e estou perdendo o meu tempo aqui.

Descobri que se chamava Joaquim.

Joaquim estava com roupas desproporcionais ao seu corpo, de forma que a camisa deixava sua ausência de barriga de fora, as calças expunham as finas canelas, enquanto usava um tênis preto acompanhado por outro azul — seu par de tênis. Até aí, mendigo normal. O que me marcou foram os livros enfiados em uma saca azulada que ele carregava por aí. Lá havia pouco mais de doze livros que iam desde Machado até Millôr — uma pequena coleção, mas que daria banho em muita da "cultura" que existe nas mochilas e mentes do Brasil.

Após me sentar ao seu lado, comecei a questioná-lo sobre como ele possuía esse talento todo para a leitura, já que vivia longe de um lar. A minha resposta foi a seguinte: "Nem sempre vivi nas ruas. A minha vida já foi bem luxuosa em comparação a essa miserável que tenho agora. Eu tive uma esposa, uma bela esposa. Seu nome era Vanda. Nós vivíamos numa casa minúscula. Não era grande e nem bonita, mas era nossa, sabe?", eu precisei assentir com a cabeça para que ele prosseguisse. "Tudo era agradável, até que Vanda caiu doente. Levei-a ao hospital mais próximo, e descobrimos um câncer. Paguei tudo que pude por seu tratamento, mas isso não foi o suficiente para que ela resistisse. Quando se foi, eu percebi que não importava o quanto de dinheiro eu tivesse, nada poderia ter salvo minha querida Vanda."

Precisei interrompê-lo, já que eu estava com fome e precisava oferecê-lo uma refeição. Incrivelmente relutante, ele aceitou e me acompanhou até um dos restaurantes mais próximos. Após vinte minutos, dois garçons de nariz empinado e um gerente mal encarado, estávamos sentados à mesa tendo uma agradável refeição.

Então, ele continuou com o seu relato: "Eu tentei voltar à minha vida normal, mas não estava certo. Não havia significado. No trabalho, eu decaí muito, a ponto de ser mandado embora; mas isso não me incomodou. Se o dinheiro não pôde prover saúde à minha esposa, por que eu deveria continuar lutando por ele? Com o passar do tempo, as contas foram expirando, água e luz foram cortadas, mas as cobranças continuavam. Até que eu abandonei a minha vida. Trouxe, em uma mochila, os livros que você vê, um broche de cisne que pertencia a Vanda — ele o tirou do bolso e me mostrou — e o pouco dinheiro que me sobrou. Saí andando pelo estado, país; vivendo de caridade ou troca de favores. Até que a idade me abateu, e as velhas pernas começaram a falhar. Então, procurei a primeira soleira que encontrei, e ali fiquei, acompanhado pelos livros favoritos de Vanda e pelas pessoas que passavam por mim...", ele suspirou para terminar," ...apenas esperando pela minha hora...".

Eu insisti em ajudá-lo, mas ele negou sem pensar duas vezes. E disse que agradeceria se lhe fizesse companhia no caminho de volta até o ponto inicial. Ele também disse que adorou conversar comigo, já que as pessoas não dão voz a ele sempre.

Ao chegarmos lá, ele voltou atrás e disse que adoraria se eu pudesse lhe ceder alguns livros velhos que eu não tivesse mais a intenção de ler. De pronto, entreguei meu exemplar de Histórias Extraordinárias do obscuro Poe. Ele não me perguntou sobre o livro, e nem sobre o autor, apenas agradeceu por tudo e começou a ler sua nova aquisição.

Levei muitos livros para ele, por muito tempo. Fiz com que conhecesse nomes do romantismo e ficção modernos. Entreguei biografias de pessoas que ele sequer pensava terem algo para contar. Levei até histórias em quadrinhos para ele, e essas aguçaram a sua curiosidade sobre o mundo dos super-heróis.

O coração apertou no dia em que levava um dos livros de Eros Grau, e não achei o meu amigo leitor. Tudo o que eu achei foi uma saca azul vazia e um pequeno broche pisoteado que lembrava uma ave. Eu fui embora dali, mas deixei o livro para trás. Onde quer que esteja, sei que Joaquim vai voltar pelo livro. Seja para lê-lo, seja para observá-lo do alto de uma nuvem, acompanhado por Vanda.

Meus escritos. Eu quem escrevi.Where stories live. Discover now