Capítulo Dois - Madre Teresa.

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Belo Horizonte, Minas Gerais, 04 de Março de 1998.

Dia 03. 

– Já sentiu-se deslocado, Werther? Aquela sensação de que o lugar em que se está, a conversa, o tempo... uma certeza de que você não pertence a coisa alguma ao seu redor. 

Werther levantou os ombros, falando de modo ávido em seu impecável inglês há muito aprendido. – Isso costumava acontecer na grande maioria das festas de faculdade em que eu ia sozinho. 

– Pois bem – suspirei, voltando as lembranças. –, enquanto eu analisava o seu irmão, percebi o que o universo todo é a festa de faculdade dele.

Em tal Quarta-Feira, Frederick ignorou o divã, e perguntou se poderia se sentar na minha cadeira. É claro que fiquei bastante curioso com o pedido, e por pouco não acabei recusando-o. Número um, porque isso poderia significar que ele buscava inverter os nossos papéis. Depois... eu gosto da minha poltrona. Entretanto, como aquele rapaz estava tornando-se o meu entretenimento e trabalho preferidos, concordei. Ele sentou na minha cadeira, recostando-se no estofado e colocando o pé direito sobre o joelho esquerdo. Seus braços enormes esparramaram-se pelos inanimados da poltrona.

– Aproveite. Não vou fazer isso de novo. – murmurei, acomodando-me no divã com o bloco em mãos e a caneta preparada na orelha direita. 

Frederick assentiu, sorrindo. Quando não carrancudo, sua aparência tornava-se quase aceitável. – Garanto que esta é uma vez em milhares. 

– Como foi essa noite, Johnny? Foi presenteado? – eu buscava saber acerca de seus sonhos. 

Ja, ja – respondeu-me de pronto. – Não falha noite alguma, Elias. Nunca falha. Sempre vem.

Sabendo que minha pergunta acerca do que ''sempre vem'' seria ignorada, eu resolvi, novamente, esperar que esta se respondesse sozinha. – Quer continuar de onde nós paramos ontem?

Seu irmão apertou o queixo e coçou, bem no lugar onde uma barba muito clara e espalhada pelo rosto com uniformidade surgia. – Eu falei da minha segunda adoção, não foi isso? Pois bem. A família que ficou com a minha guarda desta vez foram os Kaltenbrunner. A justiça tirou-me dos Finkler por maus-tratos, e os Números também. Eles foram para um orfanato, mas a homem que me levara para a hospital deu entrada num pedido de minha guarda. A adoção acabou saindo por volta de dois anos depois que eu já morava com a minha família. 

– Me parece que você não sente muita falta de sua primeira casa, a dos Flinker. Quero dizer, apesar de Günther, você não sentiu saudades de Zarah, ou mesmo dos Números? – puxei a caneta, e fazia anotações acerca da falta de empatia que Frederick tinha por eles, e pelo visto, por qualquer um.

– E por que eu deveria sentir falta de lá? – o rapaz franziu o cenho numa medida mais exagerada. 

– Porque aquela foi a sua base de vivência de mundo. Seus primeiros anos de formação foram vividos com os Flinker. – expliquei.

Ele apenas balançou a cabeça em negativa, suavizando o semblante de pouco caso. – Elias, eu não me lembro de muito do que passei com aquela primeira família. Quase todas as minhas recordações foram formadas com os Kaltenbrunner. Porém, nicht. Apesar de gostar dela, não senti nenhuma tipo de saudade de Zarah. Agradeci aos céus pela separação entre os Números e eu. E quanto a Günther, não faria diferença pra mim se ele fosse comido por cães do inferno. 

Como um bom profissional, encarei a declaração fria e livre de pudor de forma cética. – Continue, por favor. 

Frederick era o tipo de pessoa que pouco se remexia no assento, muito quieto, profundamente concentrado no relato que faz. – Minha família não era completa. Não existia uma mãe, apenas um pai e um irmão. A nome do pai era Otto Wolfgang Volker Kaltenbrunner, por isso ele registrou uma de suas nomes em mim e outra no meu irmão, Werther. Ficamos apenas Otto e eu durante uma semana depois que eu sai da hospital, e então ele contou-me que na verdade, morávamos em Bonn, a capital de Berlim Ocidental. Otto era uma policial federal que trabalhava na Chancelaria da cidade. Mas não se engane Elias; Otto era uma homem bastante calma, prudente, amorosa. Ele não se assemelhava em nada do que se espera de um pai militar. Nicht. Tinha gosto por adoção, mas apenas conseguiu a minha guarda e a de meu irmão. Otto nunca foi casada; jamais o vi com qualquer mulher na vida. Talvez ele fosse assexuada, pelo menos foi o que Werther e eu tivemos a coragem de concluir quando ele morreu.

A fúria da inconstância.Where stories live. Discover now