Capítulo 23 - Parte Dois

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A bolota em minha garganta é difícil de engolir, mas eu me esforço. Não quero estragar minha parca confiança recém-conquistada.

Ver tanta gente, jovens dispersados nesse terreno vasto, muitos com medo do que está por vir, me faz pensar em jovens exércitos cruéis matando crianças que não sabem o que é lutar, grandes massas de soldados sacrificando civis que são considerados inimigos. Faz com que eu possa visualizar campos repletos de sangue, e água manchada com o líquido branco e preto que escorre de ferimentos que jamais poderão ser fechados... Vê-los faz com que eu me lembre de Pietro, de Lucca, dos irmãos Bertolini e meus outros "companheiros de batalha", pois gostaria que tivessem tido a chance que não tiveram. Vê-los, mais que tudo, faz-me lembrar de Lise Moreau. E lembrar-me dela não é algo que eu esteja disposta a fazer.

Eu sei do que Samantha falava ontem. Sei o que vi na janela de meu quarto. Sei que a besta nos arredores do Triângulo em Mônaco pode ser mais que um animal geneticamente modificado. Sei por que eu, mesmo estando atordoada e atemorizada, não entrei em pânico ao descobrir o que essas coisas eram.

Eu vi coisas demais em meu curto tempo de vida. E não estou disposta a revelar mais do que isso para aqueles que buscam entender meu comportamento frio e desconfiado — às vezes, fechar-se em si mesmo e ser solitário é mais fácil do que deixar o mundo entrar e correr o risco de ficar sobrecarregado.

Optamos por descer pelo caminho mais afastado, mais longo, próximo à margem da floresta, para usar de apoio os troncos das árvores mais próximas a nós. O cheiro de orvalho, fraco e quase insensível ao meu olfato, permite-me um minuto de conforto. Esse cheiro, mesmo que não me lembre de nenhum lugar específico, me faz pensar em palavras como lar e casa — em todos os sentidos das palavras.

— Parece que você é a caçulinha, bambina—, digo à Penny, em tom provocativo, apontando o grupo que vemos com parcialidade e recebendo um olhar fechado e um biquinho.

Frida revira os olhos e nos ajuda a terminar o caminho. Começamos a percorrer a trajetória de campo aberto para chegar até as cabanas.

— Olá —, soa em meu ouvido. Dou um pulo em meu lugar, virando-me na direção do chamado. Patética. — Opa, calma aí, princesa, sou só eu.

Respiro fundo à visão de Arthur caminhando à minha esquerda, sem esboçar uma mínima reação ao apelido — forçado e desnecessário — que me atribuiu. Forço meus punhos a relaxarem e meu corpo a sair da postura rígida que tomou.

— Não achei que você ficaria conosco, afinal, você não parece ser de Aliança. Não deveria estar com os moradores daqui, ou qualquer coisa assim?

Preocupações com meu tom rude estão fora de minha cabeça, sendo que não defini se não me importo com sua presença ou se ela me aborrece. Ele, porém, parece não se incomodar com meu tom, pois se ajeita em sua posição ao meu lado e apoia-se em meu ombro, o que me deixa em um instantâneo estado de alerta pelo simples fato de que eu não gosto de ser tocada por estranhos.

— Estou com o grupo dos habitantes de New Long Beach, sim —, concorda ele, virando-se para me encarar cara-a-cara. — Mas não consegui achar seu quarto, então... Vim ver você aqui.

Não gosto da especificação que ele faz. Parece-me bem claro que optei por desgostar de sua proximidade.

— Não sei por quê. Nós nos veríamos no almoço ou no jantar —, digo-lhe, com o uma calma e educação que não tenho, fingindo tropeçar numa pedra para livrar-me de seu toque.

— Estaríamos com muita gente ao redor, não é?

Interrompe-se, para olhar para Frida e Penny, imersas numa conversa particular que concede uma privacidade que não quero para o diálogo entre Arthur e eu. Ele dá um sorrisinho confiante, ao voltar-se para mim, que me faz pensar na quantidade de garotas que devem ter caído aos seus pés. Não gosto de imaginar o motivo de ele usá-lo comigo.

— Está muito estressada, Nori —, comenta Arthur, inclinando-se sobre meu corpo, como alguém que vai contar um segredo. — Precisa relaxar. Podemos nos encontrar em um lugar mais tranquilo, para eu ajudar com isso...

A sugestão desagradável é a gota d'água para meu temperamento instável. Pergunto-me, não sem uma pontada de entusiasmo, se terei de passar do limite da grosseria e parar a coceira de minha mão esquerda oferecendo ao garoto o soco no maxilar que estou tentada a dar, em resposta à sua ideia tão "bem-intencionada". A covinha que se abre em sua bochecha esquerda é um convite para minhas juntas flexionadas.

Meu sangue borbulhando aprova a ideia. Uma descarga de adrenalina me invade e a possibilidade de aliviá-la desta forma parece-me muito atraente, neste momento.

— Ela está bem —, rejeitam por mim, fazendo uma ação de minha parte ser desnecessária.

Nenhuma palavra sai de minha boca. A interferência de Daniel vem em boa hora, embora da pessoa errada.

Kash está atrás dele, em uma pose séria, Frida e Penny estão olhando para nós com atenção, a primeira com as sobrancelhas erguidas, e a última com inquieta preocupação. No olhar de Daniel, que sequer se dirige à minha direção, parece haver uma questionável faísca se acendendo, que desaparece logo que ele se vira para mim, ao parar seus passos frente a nosso grupinho.

O brilho que encontro desta vez é algo próximo de uma ameaça. A mensagem ali está clara: mesmo sem querer, estou lhe devendo.

— Acho que a Nori pode responder por ela mesma. — É a fala de Arthur.

Daniel e Kash não parecem gostar do retrucar. Indago-me se um novo grupo está efetivamente sendo criado. A pergunta principal, entretanto, é se estou preparada para fazer parte de um, uma vez mais.

— Vou ficar.

Ninguém diz nada. Estou surpreendida de não termos plateia — todos estão ocupados demais com seus próprios mundinhos, há poucos metros de distância de nós, para prestar atenção ao embate silencioso que sinto instalar-se entre meus "protetores", eu e o garoto dono de si que me olha com uma expressão ambígua.

Apoio numa cabana, sentindo um mal-estar súbito me abater, ante a vigilância de meus poucos espectadores.

— É claro —, Arthur formula as palavras, inexpressivo. — Desculpe incomodar.

O sorriso que oferece quando vai se afastar é tudo, menos amigável. Não se faz necessário um questionamento sobre a chance de eu ter ganhado um novo inimigo. Duvido de que a resposta seja negativa.

— Não vai me agradecer por isso, princesa? — Provoca-me Daniel, fazendo com que viremos para ele.

Seus olhos são fendas predatórias, uma milimétrica faixa azulada observando cada movimento meu, e a cabeça, com uma leve inclinação para o lado, dá um ângulo especulativo a seu rosto, que não se desvia de mim. Estranho o fato de poder ver o exato ponto onde uma de suas veias corre forte, potente, quente, bem ali, no ponto central de seu pescoço exposto.

Percebo que fiquei mais tempo que o aceitável encarando-o quando Daniel se endireita após uns poucos segundos de silêncio. Não me surpreendo ao ver sua expressão fechando aos poucos. Parece que ser uma mania nossa: ele me provoca, eu o provoco, acabamos comigo calada e ele me encarando com essa expressão indagadora, quase ofensiva, medindo-me de cima a baixo, como se procurasse descobrir o motivo de haver tanta determinação em uma pessoa com aparência inofensiva como eu.

Quero bater em sua cabeça e gritar que não sou vulnerável. Somente sorrio com dissimulada doçura.

— Acho que ele não vai importunar tão cedo, Nori —, opina Kashka com delicadeza, quando a pausa fica longa e constrangedora demais. — Nem sendo óbvio assim. Ele não deve representar um perigo real, aqui.

Giro a cabeça na direção do garoto que acabou de falar, sem sentir necessidade de me armar contra sua atitude pacífica e amigável, o oposto do colega irritante.

— Se ele voltar a fazer isso, será quando estiver sozinha —, aponta Frida, observando as costas do jovem que se afasta com rapidez, subindo a colina numa estradinha de terra parecida com uma escada, longe da floresta. — Não fique desacompanhada. Ao contrário do que parece, ele não parece boa coisa, para mim. Não acho que seja alguém a se desconsiderar.

"Eu também", acrescento em silêncio.

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