Capítulo 32 - Parte Dois

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Deixo Chia sumir na curva ao fundo para só então correr escada acima, apressando-me em direção à porta do quarto, pegando o conjunto de roupas idênticas a que uso, toalha e uma pedra aromática de sabão. O baque surdo de meus tênis no chão de mármore, sem os tapetes que afofavam o som, é baixo, mas audível. Corro para a esquerda e viro a direita em menos de quinze segundos, ansiosa para chegar ao banheiro que fica na parede no meio do corredor.

O vestiário, como é chamado por algumas, é dividido entre as dezesseis meninas que estão nos dois corredores sem saída que formam a fileira de quartos, sendo que sua entrada se localiza no corredor que segue reto pelos vários metros de passagem deste lado da mansão. Considerando que são oito quartos ocupados usando um banheiro, toda esta parede, a que temos que seguir para ir para o saguão, é tomado pelos quartos de banho, para suprir todo o restante do amontoado de garotas que ocupam a parte Leste do prédio. Os meninos ficam na direção oposta à nossa.

Estou sozinha quando piso no solo frio dali, como em todos os dias que me esgueirei para banhar-me sem a presença de possíveis observadoras. Sei que não sou capaz de controlar minhas reações e prefiro não arriscar ter que dar explicações impossíveis de serem compartilhadas.

Ignoro o espelho que fica à esquerda, quando entro, e passo reto pelas duas fileiras de três sanitários cada. Os seis chuveiros ao fundo do ambiente, divididos em três espaços separados em cada lado, como os sanitários, concedem às usuárias a mínima privacidade que se pode ter com portas feitas por cortinas plásticas. Escolho o último cubículo, jogando no gancho que há na parede que limita o recinto a calça, camisa e toalha, e deixo os sapatos que tirei no chão. As roupas íntimas são colocadas em um apoio para sabão suspenso no interior, o qual eu deixo no potinho que o guarda, no piso.

Os chuveiros possuem água quente acessível, em especial para o inverno, mas eu coloco na temperatura mais gelada antes de dar um passo adiante, jogando as roupas sujas em um lugar qualquer.

— Ai, ai, ai!

Chio com o contato de minha pele com o líquido frio, respirando fundo para a sensação desconfortável. Lavo-me com movimentos ligeiros primeiro, usando um minuto para fazer uma limpeza rápida das peças íntimas usadas, adiando o momento em que terei que molhar-me por completo.

Em meus dias aqui, só lavei os cabelos uma vez e acabei tendo um sonho estranho com peixes com presas longas, algas com tentáculos e garras e uma cabeleira loira vendo-me afundar, um resquício de minhas antigas fobias; não consegui me livrar por completo delas. Por isso, permito-me o consolo de uns minutinhos a mais que o necessário limpando as roupas até ter certeza de que não há um mísero grão de sujeira remanescente. Mas eu não estou acostumada a ter tanta água limpa à minha disposição para uso pessoal, então, como em todas as mil vezes em que tive que fazer isso em meus anos, repetindo que a higiene pessoal é importante e não pode ser desconsiderada, eu enfio a cabeça de uma vez sob o chuveiro para tirar de vez este curativo sobre minha ferida exposta.

Três, cinco, dez segundos passam com minha cabeça ali, num esforço de molhar todas as madeixas. É o período máximo que posso suportar. Não aguento mais e dou um tranco para frente, quase abrindo a cortina que me priva de ver o exterior do lugar. Respiro fundo, desligando a corrente de água para acalmar-me e certificando-me de que tenho, sim, oxigênio para respirar.

— Viu? — Indago-me num sussurro. — Não foi tão horrível assim.

Passo o bloco perfumado em meus cabelos e ensaboo-os, fazendo espuma. Sem conseguir manter-me olhando para a imagem de peixinhos na cortina tosca por mais tempo, cerro os olhos por completo, volto a ligar a água e dobro o pescoço para trás, para enxaguar o sabão de minhas madeixas escuras.

Afirmo-me que está tudo bem. Está acabando e eu não pirei.

Isso é mais do que posso dizer dos últimos anos.

Com os olhos apertados em uma apertada firmeza, eu fico quieta numa tentativa de apreciar a forma como as gotículas se arrastam por minha extensão, descendo por entre meus seios e na linha das minhas costas, acarinhando minha face para tirar os resquícios de sal do Mar que parecem estar impregnados no próprio ar. Tento desfrutar da sensação de ter a sujeira e grãos de areia sendo removidos de meu couro cabeludo. Com o decorrer dos segundos e nada acontecendo, o toque do fluido torna-se menos inquietante e mais delicado, e, por isso, permito-me relaxar meus membros.

Este é meu erro.

Um ínfimo abrir involuntário de minhas pálpebras traz para meus globos oculares uma porção generosa do sabão de meu cabelo, causando a irritação que me faz recuar um passo. Noto, porém, tarde demais, que me coloquei mais embaixo do líquido que me atormenta, o que gera um protesto saindo de meus lábios que, agora abertos, trazem uma boa porção deste para dentro de minha garganta.

A cena que passa por minhas retinas em um milésimo de segundo é uma imensidão azul engolindo, pulsando, levando para longe um par de braços miúdos que não sabem remar, um corpo infantil que não sabe boiar, sugando com cruel lentidão uma vida que deveria ter mais histórias para contar.

É demais para mim.

Tusso e pulo para frente, cuspindo e ofegando com força, saindo de perto daquele aperto sufocante que ameaça tirar minha estabilidade mental.

Cuspo fora tudo o que há em minha boca. Entre sabão e água, sinto um questionável gosto de sal. Dou um passo para frente apenas para puxar a corrente que permite a queda da água e pegar minhas roupas e a pedra aromática que usei para limpar-me. Ofegando, tenho meio minuto para vestir as peças de roupa de baixo antes de ser abordada.

— Imaginei que te encontraria sozinha aqui.

Dou um pulo ao virar para trás, em direção à voz.

— Eu acho um tanto quanto curioso o fato de você se sentir tão segura em estar aqui sozinha, quando sequer ousa confiar nas pessoas que estão ao seu redor — a voz prossegue, em tom de zombaria. — Afinal, não foi você mesma que atacou um alfa para evitar ser controlada por ele, garotinha?

Eu cruzo o espaço que há entre meu corpo e a parede, afastando-me ao máximo do ser que avança em minha direção.

— O que faz aqui? — Pergunto à figura feminina, que se aproxima com calma.

Minha voz, ridiculamente, está um tom mais aguda que o normal.

Minhas costas raspam pela superfície lisa e úmida da parede conforme eu rodo com a mulher, fazendo um semicírculo no banheiro, para evitar tê-la mais próxima do que a distância de dois metros. Logo, estou de costas para o espelho e de frente para a parede que antes servira como meu apoio.

— Onde está Sam?

Astrid solta uma risada zombeteira.

— A prepotente e irritante Samantha está muito distraída com sua valiosa Penélope para desconfiar que seus outros queridinhos estariam no lugar errado e na hora errada esta noite — diz, dando de ombros. — Ela tem uma mania estranha e questionável de confiar demais nas pessoas que estão à sua volta, você não acha?

Ela para onde está, apoiando-se na parede para fitar-me.

— Samantha pode ter vivido muitas coisas com a primeira geração do povo Cae, e pode até ser conhecida como uma sábia para conselhos sobre nossos antepassados e a origem de nosso povo, mas ainda não aprendeu uma valiosa lição que eles receberam... — Ela deita a cabeça para o lado, olhando-me com uma expressão de escárnio. — Quem está mais perto costuma ser quem é mais perigoso para você.

Um arrepio frio percorre minha espinha.

— O que quer comigo, Astrid?

— Ah, tolinha, o que eu quero de verdade você não pode me dar — suspira dramaticamente e olha para as unhas grandes — mas confesso que seria um imenso favor vê-la sumir — e ergue a cabeça.

Há muito não fico em pânico como no momento em que foco nos olhos castanhos de Astrid. Prendo o fôlego. A mulher me dá nada mais que um sorrisinho quando, com um gesto de seus dedos, sou jogada para frente rumo a uma intensa escuridão.

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