Capítulo 22 - Parte Um

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- O sino está tocando, acho que é nossa deixa -, Frida anuncia de repente, erguendo-se e puxando-me para fazer o mesmo. - Hora de sair do sedentarismo.

Quando saio para o corredor, a primeira coisa que noto é como ele não me parece mais tão aterrorizante quanto das últimas vezes que o cruzei. O ambiente continua é frio e desconhecido, nada familiar ou aconchegante, mas não tenho a instantânea vontade de sair correndo.

Deixamos o vitral colorido para trás, junto com a última porta do espaço, que dá acesso ao nosso quarto.

- Para onde vamos? - Indago.

- O que vamos fazer agora? - Penny pergunta, ao mesmo tempo.

Rimos, seguindo ao fim do corredor e parando quando não sabemos o lado que deveríamos seguir.

- Vocês vêm comigo.

Ninguém comenta o pequeno susto ao ver a figura séria de Astrid, que nos encara, à Penny e eu, em específico, com um olhar assassino.

Fazendo o caminho oposto ao do refeitório, descemos uma longa escadaria e paramos ante o corredor da Sala dos Sofás, onde podemos nos localizar com facilidade, considerando seus múltiplos acessos, explorados no dia anterior após a conversa com Samantha.

- Biblioteca, depressa -, é a fala da ruiva, que nos deixa sem olhar para trás.

Frida dá de ombros e vai para a biblioteca, com Penny e eu seguindo-a.

Risadas e ruídos pesados são audíveis por detrás de portas fechadas. Escuto um grito de dor, seguido por palmas e risadas; não quero saber o que foi. Nosso caminho é feito em passos ligeiros, não demorando mais que um minuto para estarmos adentrando o cômodo que mais conheço na mansão - fora o meu quarto.

- Olá, meninas.

Dou um aceno distraído para Samantha, surpresa por vê-la no corredor do primeiro andar, ao invés de estar na parte final do espaço, onde a encontrei nas últimas vezes.

- Subam, subam.

A madeira sob meus pés range em sons desagradáveis, mas eu sorrio. Esses sons me trazem lembranças boas de um tempo em que a madeira rangia sob dois pares de pés infantis. Balanço a cabeça.

Samantha agora está numa espécie de saleta de estudos, um lugar parecido com a sala de reuniões, embora menor e mais confortável, tendo poltronas e mesinhas com cadeiras no lugar de uma extensa mesa escura. Longas janelas de vidro concedem uma iluminação agradável ao ambiente.

- Acho que temos atividades, agora.

A fala de Frida é dita com delicadeza e não incomoda Samantha.

- Marine foi informada da ausência de vocês. Para ser sincera, eu queria falar com Penny e achei que Nori fosse querer estar presente.

Ela diz olhando para mim.

- Entendi a deixa -, brinca Frida, recuando.

Samantha lança um olhar de desculpas que é desconsiderado por Frida, mas fica calada, esperando ela se retirar para voltar-se para Penny e eu.

- Desculpem tirá-las mais uma vez de suas atividades.

- Não estou acostumada a ter rotinas -, digo, em tom leve. Ela sorri, como se quisesse dizer algo, mas não fala nada. - Achei que Chia estivesse aqui.

- Ela veio -, aponta para a porta lá embaixo com a cabeça -, mas pedi que fosse falar com Victoria. Ela talvez possa ajudar em sua situação mais do que eu.

- O que queria perguntar para mim? - Indaga Penny, depois de uma breve pausa.

Admiro-a por sua coragem em enfrentar uma posição que a deixa desconfortável, como falar sobre as coisas que não nos revela. Ela não se esconde como das outras vezes, ao invés disso, sai de meu lado e segue até Samantha, para se posicionar ao seu lado.

- Sem perguntas dessa vez.

Acompanhamo-la em sua ida para uma das mesinhas de madeira mais ao fundo do espaço e sentamos uma de cada lado dela, quase fechando o quadrado que forma o conjunto de móveis. Em nossa frente está estendido um gigantesco papel amarelado e quadriculado, liso, sem arranhões ou nada do tipo.

Noto que estava em pé de modo que ocultasse a visão deste pedaço da sala.

- Não é de praxe fazermos este tipo de procedimento, mas preciso ter certeza de uma coisa -, explica a mais velha, sem desviar a atenção do papel. Ela parece sentir nossa curiosidade, pois acrescenta: - Chamam-no de Praedictio em alguns lugares.

- Predição?

Samantha me olha surpresa, com os lábios entreabertos.

- Tem conhecimento das línguas antigas?

- Não -, meneio a cabeça, evasiva. - Mas, apesar de não deixar de falar o Inglês obrigatório de Aliança, vivi um bom tempo perto dos dialetos da Sétima Cidade. A palavra pareceu-me um pouco familiar.

Não é uma mentira, mesmo que não seja a verdade completa. Ela aquiesce.

- Entendo. - Ela ainda me fita contrariada, mas decide focar em sua fala sem mais perguntas. - O que importa é que este pergaminho é muito útil para nós ou qualquer um que saiba usá-lo, por possibilitar um conhecimento que poderia ser difícil de conseguirmos de outras maneiras, embora o que ele faz não signifique exatamente o que o nome diz.

- E o que ele faz? - Indaga Penny, com os olhos abertos em expectativa.

- Creio que não precise pedir, mas o farei assim mesmo -, inicia Samantha, piscando para o pergaminho. - Não podem contar a ninguém o que acontecerá aqui. Suas amigas estão incluídas nisso, por enquanto.

Engulo em seco, trocando olhares com Penny. Não gosto da fala de Sam. Abstemo-nos, Penny e eu, em balançar a cabeça como uma concordância muda.

- Dê-me sua mão esquerda.

Observo, não sem um suave sobressalto, quando Samantha puxa o anelar esquerdo de Penny e o perfura com uma fina agulha que apareceu de repente. Cerro a boca, dando à mulher uma chance de fazer o que quer sem falar nada, algo nada fácil; o protesto está em minha língua.

- Só uma gota...

Assisto quando bolotinha de sangue se empossa no dedo de Penny, escorrendo, escorrendo, até que se solte de sua genitora para cair na superfície envelhecida do papel, manchando-o com sua essência rubra por um, dois, três segundos antes que seja absorvido por completo, deixando para trás nada mais que um tom profundo e amarelado velhice.

Não há sinal do sangue de Penny.

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