Four Seasons - JJK

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O N E

V E R Ã O

"E quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver. Nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim. Mas uma coisa é certa. Quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa. Só assim as tempestades fazem sentido."- Haruki Murakami.

...

Talvez eu tenha entregue minhas percepções temporais a música que soava nos meus fones enquanto a calmaria nas margens do Rio Sena me tomava. Meus olhos passaram tanto tempo focados naquela mansidão que se fecharam, sem ao menos me dar a chance de notar as mudanças climáticas a minha volta. Voltei as minhas reais noções quando o primeiro pingo d'água bateu em meu braço, abaixo do término da manga preta da minha blusa.

Neste exato momento meus olhos se abriram então percebendo que o céu acima de mim era tomado por nuvens cinzas, que se alastravam umas sob as outras. Me levantei rapidamente calçando as alças da velha capa que guardava um violino, saindo às pressas e cruzando os dedos para que a tempestade que prometia vir não chegasse antes de eu fechar as portas daquele antigo dormitório. Se estivesse em qualquer outro dia desacompanhado de qualquer objeto, provavelmente eu seguiria meu trajeto tranquilamente ou continuaria sentado às margens daquele rio, enquanto as leves gotas de água cobriam o meu rosto. Porém aquele instrumento detinha o poder sobre mim, uma gota que o tocasse poderia enferrujar suas velhas cordas ou estufar a madeira antiga, o fato é que eu não corria pelo objeto, mas pois não estava disposto a aguentar as reclamações do meu companheiro de quarto não muito bem humorado, por mais que estivesse lhe fazendo o favor de levar o instrumento para o dormitório, sei a estima que ele guardava e quantas reclamações teria que ouvir.

Praguejo quando sinto um pingo mais grosso cair em minha cabeça, escorrendo pelos meus fios de cabelo e grudando em minha testa, eu praticamente corria quase esbarrando nas pessoas que andavam tranquilamente abrigadas por seus guarda chuvas. Estando a duas quadras do meu destino, meu desespero faz com que eu busque qualquer lugar para me abrigar, já que agora meu corpo se molhava por completo. Abraço o instrumento em busca de protegê-lo e assim que passo em frente ao velho auditório, em que tive minhas primeiras aulas quando cheguei em Paris, projeto meu corpo contra porta na esperança de que estivesse aberto.

Um suspiro de alívio deixa meus lábios quando passo entre as duas portas de madeira que se fecham atrás de mim, minhas roupas estavam ganhando um peso a mais pela água que haviam absorvido. Balanço minha cabeça, passando os dedos entre meus fios molhados em busca de retirar o excesso de água presente neles. Abro a capa certificando que a água estava começando a molhar a instrumento.

-Droga! - resmungo balançando o objeto.

Parei com todas minhas observações ao ouvir o primeiro toque das teclas do piano, Comptine d'un autre été, composta por Yann Tiersen, soa perfeitamente por aquele antigo auditório, eu já a ouvi ser executada antes, mas sem sucesso algum, meu colega de quarto insistia e sempre finalizava com a reclamação de que uma única música feita para canhotos em piano, poderia ser toda a retratação histórica. Nos concertos em que fui algumas vezes, sempre guardei a esperança de que a tocassem, mas sem sucesso algum. Então passei algumas semanas tentando, esbarrando meus dedos pelas teclas erradas e arranhando as notas certas, ao final eu desisti.

A música inicia de uma maneira consideravelmente triste, é como se representasse a caminhada de alguém e aos poucos a agitação a toma, eu sentia algo inexplicável quando a ouvia e neste exato momento eu estava preso ao seu encanto sonoro, acreditando que talvez fosse algo da minha mente. Ando em passos largos entre os assentos almofadados, tentando encontrar um lugar que me permitisse a visão de quem a executava, distraído e guiado pelas notas, eu acabo tropeçando e caindo no banco a minha frente, me levantei tirando os cabelos dos meus olhos e seguindo mais rápido do que antes, aos passos atrapalhados enquanto a música se aproximava do fim.

As cores de uma vozOnde as histórias ganham vida. Descobre agora