Aconchego

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Olhei pra você de cantinho. observei suas dobras, suas curvas, suas cavernas. eram nelas que passava a maior parte do tempo, enfurnada no canto mais silencioso de si. eu, como banda marcial, fazia uma algazarra de dez pelotões a batucar os bumbos e orquestras. você me pedia sempre que calasse o silêncio do tempo e do sol e hoje, ao te ver, permiti a mim mesmo que lhe desse esse desejo e percebi o quanto você desaparecia em meio ao ar livre e empesteado de incenso da nossa sala. esse mesmo silêncio do tempo que me calava, marcava em minhas pálpebras o cansaço de esperar pela resposta tardia de que você respirava e fazia ainda parte do espaço aconchegante sobre o lençol ou coberta. a minha voz procurou seus cílios e sobrancelhas como os dedos ágeis dos cegos que farejam o alfabeto em braile. era a ânsia de novamente poder sentir escorrer as notas até seus lábios embebidos de conversas por sorrisos. era natural que o eco entre nossos corpos estranhos não poderiam ser mais um pouco de tudo o que me saciava a sede de ter próximo ao meus melhores abraços. te ver se encostar na parede manchada pelo suor dos nossos corpos que ali se apoiavam a procura de uma sensação de frieza, me fez relembrar dos cuidados na infância pra não ficar doente e essa era o diagnóstico para as pontes rolantes que me separavam dos seus dias nublados. o ventilador agora grita ventanias empoeiradas e meu nariz coça. na ânsia de me espirrar de mim, encontro você, meu lenço, meu rinosoro, meu cobertor. mas não encontro as palavras que se perderam em meio ao teu pedido de silêncio e agora você veste calcinhas e você veste a blusa e você veste o dia e sai. nos meus olhos apregoados de terra e remela, sobram lágrimas de ginasta, dançantes e vacilantes, rumo ao salto. dessas complexidades do ato de ver sua silhueta na portaria do meu corpo, prefiro focar no traçar dos passos, porque foi através deles que aprendi a caminhar sem dinheiro e sem companhia. teus passos para além dos limites da nossa câmara do tempo me fez perceber que era melhor ter me deixado ser barulho e temporal. ainda sigo querendo te olhar mais de cantinho, agora refletido nos óculos embaçados pelo calor do corpo de batalhar por flores e frutos. mas teu signo de existência sempre fez parte do meu léxico, do meu latim, do meu verbo de apenas viver o que nunca fui. sigo no fio da navalha, mas na vertical de ser o meu eixo e abrigo.

Quimeras AbortadasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora