Conexões

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Eu não deveria estar aqui, mas agora que estou, deixe-me sentar no meio-fio e te escrever uma carta extraviada de tudo o que eu deveria sentir. Num ato louco e impensado, me vi virando a sua esquina, entrando naquela rua que já percorremos inúmeras vezes, de mãos dadas, apostando corrida, carregando sacolas com nossos jantares. É a primeira vez que passo por aqui em anos. Não sei porque estou aqui, o que foi que me deu depois de todo esse tempo pra estar aqui fazendo papel de boba, mas estou. Em carne, osso e coração, parada em frente à sua casa, ouvindo suas canções favoritas saírem da janela do seu quarto. Pode chamar de maluquice, masoquismo ou só saudade. Não vou te chamar, fazer escândalo, muito menos serenata; não vou bater na porta e sair correndo, tocar o interfone só pra ouvir tua voz ou tacar uma pedra na tua janela. Só vou sentar aqui e escrever uma carta pra não te mandar, sobre todos os dias que passaram e o que nunca mais foi o mesmo sem você.
Sabe que hoje no mercado tocou aquela nossa música e eu fiquei cantando feito louca desejando que você estivesse lá? Como naquele dia em que sem querer fizemos um dueto ao reconhecermos aqueles acordes tão nossos soando numa caixa de som qualquer. Sua música favorita nunca mais será a mesma, e isso me soa como uma espécie de vingança por tudo o que nunca mais será o mesmo nessa vida que, depois te abraçar, foi forçada a abrir os braços e te deixar ir. Disseram que amor só passa a ser amor quando você a encontra nos versos de uma canção que não é uma qualquer. Então foi amor, eu descubro sempre que tiro o pó das lembranças. Mas a canção não parou, as notas continuam a sair da sua janela, e o amor?
Ah, moça, depois de você, seu estilo literário nunca mais foi apenas mais uma estante da livraria; as músicas que um dia ouvimos nunca mais tocaram sem nossa história nas entrelinhas; as coisas sobre as quais falamos nunca mais foram apenas coisas, são pequenas partes suas que não me deixarão jamais. Inevitável pensar se na sua vida também existe uma espécie de exposição "depois de você", baseada em mim, cujos corredores estejam abarrotados de pequenas coisas que só nós conhecemos e por eles sopre aquele vento de saudade.
Será que alguma vez você me escreveu uma carta que nunca li? Será que um dia, passando pela minha rua, você ameaçou parar em frente à minha sacada? Será que seus dedos já digitaram meu número e desistiram de ligar? São tantas perguntas. É difícil aceitar que pra você não tenha sido como foi pra mim, que tenha sido fácil se recompor, colocar as lembranças num baú e esquecê-las por lá, encontrar outra inspiração, alguém que soubesse melhor do que eu a receita pra sua felicidade. Sempre penso em você assim, como alguém que já me esqueceu há anos, que não se intimida com minha presença e não sente nenhuma vontade de um daqueles controles que voltam no tempo. Me ocorre agora que não sei quem é você, não sei pra quem escrevo, mas diz: depois de todos esses anos de silêncio, o que restou? Amor, saudade, torpor?
Sabe, não te esqueci. Nem por um dia ou noite fria. Nem por um segundo eterno de solidão. Nem por uma ou outra intenção que tiveram em me fazer feliz. A minha vida continuou, foi preciso. Até inventei umas paixões instantâneas, uns suspiros quando outra passou, uma esperança num relacionamento que nunca aconteceria. Tentei, tenho tentado até hoje me livrar do passado, por causa daquele blábláblá todo de que o futuro só vem quando a gente abre mão do que passou. Ah, se o futuro soubesse das vezes que abri mão de você, correria até mim sem perda de tempo e arrombaria minha porta. Só eu sei o quanto desejei o novo, o não você, o que me levaria embora desse lugar. Foram muitas as noites em que estive disposta a te deixar de lado, em que não enxerguei em você nenhum prazer, nenhum sentimento que valesse a pena ser reconstruído. Mas, DROGA!, ainda é você a que mais vale a pena. Com todos os seus erros, defeitos e incompreensões. Com tudo o que me faz te odiar uma noite inteira e derramar lágrimas por tanto te amar. Dias sim dias não acredito na gente, num futuro brilhante. Dias sim dias não, ondas de desesperança fazem o travesseiro onde minha cabeça tenta descansar. Mas dias sim e dias também te amo.
Você, moça,
que me vê da sacada, sentada nesse meio-fio, ainda é o primeiro nome que vem à cabeça quando pronunciam amor, ainda é o que há de mais novo pra me fazer suspirar, ainda é um motivo valido pra acreditar naquelas filosofias baratas sobre todos os obstáculos até o verdadeiro amor. Peço pra que um dia me liberte ou então desça até aqui de uma vez e me roube de mim mesma, desse caminho que eu seguia e tentava me levar pra longe de você. Vem cá, moça, que nossa canção não terminou. Ah, moça que amo, você é a saudade mais bonita daquela vida que ainda não vivi. E caminho melhor até lá, não há.

Quimeras AbortadasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora