Introdução

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São Paulo, 29 de janeiro de 2035

0800veronica, jornalista

 

    Nos últimos dias tenho refletido sobre o que a humanidade tem passado, e me recordado muito de minha mãe.

    Quando estava cursando minha graduação em jornalismo, lembro-me de com frequência, minha mãe afirmar que o sonho dela era me ver jornalista fazendo a cobertura de uma guerra. À época, eu dava risada e falava que esse sonho não se realizaria, mas hoje vejo como era uma universitária inocente.

    O Brasil sempre foi considerado um país neutro, mas a guerra muda a política, muda a população e tudo ao seu redor. Hoje não sei onde minha mãe está, mas estou aqui, vivendo o novo normal. Um que me deixa com medo de levantar.

    Na redação de um jornal que agora provavelmente está extinto, costumava escrever sobre conflitos locais e direitos humanos. Minha rotina era na rua, falando com a população, observando hábitos e situações e, mais tarde, sentada em uma velha cadeira de escritório, redigindo tudo o que havia coletado para a publicação do dia seguinte.

    Algumas semanas atrás, meu editor me chamou em sua sala e disse que, de todos da redação, apenas eu e mais dois jornalistas tínhamos lugar em um núcleo de segurança. Não éramos burros, e muito menos cegos, todos sabíamos o que estava acontecendo, mesmo não sendo noticiado. Mas quando fui chamada àquela sala, sabia que ao sair minha vida teria mudado para sempre.

    No dia 13 de janeiro, um helicóptero pousou no heliponto do jornal e fomos levados ao núcleo 1416-B. Tudo foi deixado para trás: famílias, pertences, vidas. Nosso papel naquele momento era se adaptar à nova realidade e relatar a rotina dentro daquele espaço.

    Enquanto sobrevoávamos a cidade, pudemos observar o caos se instalando lá embaixo. Alguns bairros mais tranquilos, mas em geral, principalmente no centro, um aglomerado de pessoas correndo, brigando, lutando por um espaço que não as seria dado. Aquela cena me lembrava a cobertura das antigas operações de "limpeza" na Cracolândia, quando a Guarda Civil Metropolitana e a Polícia Militar passavam agressivamente na região oprimindo e abusando de seu poder sobre as pessoas que ali estavam. Tudo sempre acabava em correria, gritaria, confrontos, por vezes mortes e prisões que, em grande parte das vezes, poderiam ser evitadas.

    É claro que a situação lá embaixo não era a mesma, as pessoas queriam viver e sabiam que se ficassem para fora, a morte seria certa. Ao ver aquilo, meu companheiro de trabalho começou a chorar. Nós seríamos salvos, mas a população que nos dava histórias para trabalhar, não.

    A pressão era imensa e ao chegarmos ao heliponto do núcleo, fomos guiados para a entrada superior, uma porta que era guardada por militares do alto escalão do exército armados. Os dois jornalistas que estavam comigo entraram, mas fiquei ali, parada, em estado de choque. Então lembrei de minha mãe que sonhava em ver a filha cobrindo uma guerra, mas não pela fama ou por qualquer razão fútil, mas porque sabia que nasci para dar voz àqueles que precisavam e escolheria estar na linha de frente da batalha, não acomodada em um local seguro e longe de toda a realidade cruel.

    O militar chamou a minha atenção, mas dei um passo para trás. Voltei ao helicóptero e pedi ao piloto que me deixasse em algum local próximo ao prédio do jornal. Incrédulo com a minha escolha, fui chamada de burra, mas sabia que meu lugar era do lado de fora, fazendo o meu trabalho. Aquele que nasci para fazer.

    Quando sobrevoamos de volta, e cheguei ao jornal, a redação estava vazia. Tudo foi abandonado. Liguei para meu editor e contei sobre minha decisão, ele disse que sabia que eu não conseguiria "fugir" e me passou seu endereço. Falou que seria impossível ficar naquele prédio, porque em alguns dias aquilo tudo seria destruído pelas bombas. Então, me convidou para sua casa, onde seguiria trabalhando, ao lado da sua família, da maneira que pudesse, até quando desse.

    Abri a gaveta da minha mesa, peguei a chave do meu carro e fui encontrá-lo.

    Faz três dias que chegamos aqui, em uma base com outros sobreviventes perto do muro SS, um local que não pode ser atingido por bombas. Meu editor, assim como parte privilegiada da população, já sabia o que iria acontecer, então se protegeu da maneira que podia.

    Não pretendo ficar aqui para sempre, temos muitos contatos com outras redações maiores que ainda estão funcionando e é para lá que estamos enviando os materiais coletado de maneira quase mínima devido ao atual risco de exposição nas ruas, mas evitei o núcleo por um motivo, e não vou me esconder.

    Quando me formei, jurei seguir um código de ética e nele prometemos garantir ao cidadão seu direito fundamental de acesso à informação. As pessoas precisam saber e entender, mais do que nunca, o que está acontecendo, e eu farei o que for preciso para que seus direitos sejam cumpridos.

Além Do Apocalipse ⚥ [Amazon]Where stories live. Discover now