Capítulo 29

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"Janeiro,

   As palavras ditas voam, mas as escritas permanecem. Por isso, e por maiores urgências, decidi escrever essa carta, ou recado, para você.
   Eu fui educado em casa, não tive muitos amigos ou aprendi a conviver com outros seres humanos além da minha irmã e, logo depois, do Alexandre. Meu pai, Otto Madraga, costumava participar de algumas aulas e, sempre interrompendo o nosso tutor, fazia questão de repetir o mesmo ditado em Latim.
Verba volant, scripta manent.
   Realmente passei a acreditar no poder da palavra escrita. Muitas vezes, fugindo do ambiente de discórdia entre nossos pais, Helena e eu nos escondíamos em baixo de uma árvore, pegávamos uma folha em branco e escrevíamos nossos desejos para o futuro.
   Quando Otto nos encontrava, amassava a folha e deixava ali, apodrecendo na terra do jardim. No fim, aprendemos que estávamos presos naquele terreno, nossos futuros não iriam além do que ele almejava e, assim como as folhas amassadas, apodreceríamos com o tempo e nos tornaríamos parte da cidade para sempre.
   Eventualmente, o Alexandre apareceu e mostrou para nós o mundo lá fora, chegou agradando até um homem que dificilmente se comovia com a pobreza alheia. Um dia, já adolescentes, ensinamos nosso pequeno ritual para ele e nos surpreendemos com os seus desejos para o futuro.
   No auge da adolescência, já sentíamos o poder da invencibilidade, mas ainda estávamos presos por paredes laranjas e um ditador. De qualquer forma, ninguém ali poderia criticar um ao outro.
   Os três queriam liberdade, entretanto, de jeitos diferentes.
   Quando revelei para você que eu não sabia exatamente o que eu estava fazendo, era verdade. Porque durante toda minha vida eu tomei decisões por terceiros e a única por vontade própria foi convidar uma garota com nome de mês para entrar na minha vida. Então talvez tudo não seja em vão, mesmo que te amar também não tenha sido uma escolha.
   Confesso que te ver desmaiada e deitada na sua antiga cama, na nossa casa, fez com que eu desejasse te prender ali para sempre. Mas eu não pude, pois eu não posso ser quem você deseja que eu seja.
   Eu ainda procuro a terceira parte da minha infância que foi queimada no fogo, nas chamas de uma fatalidade que, sim, foi em parte minha culpa. Porém, isso você nunca poderá completamente entender.
   Mas nada disso importa agora. Eu não sei por onde você esteve e o que tem feito, só espero que esteja cuidando de si. Peço perdão por te envolver em uma situação que eu deveria ter consertado há muitos anos, e eu irei.
   Nesse mesmo envelope você encontrará o seu último salário do Bar 21 e uma quantia a mais de dinheiro. Por favor, não se ofenda com isso, eu só quero o seu melhor.
   Sei que não deseja escolher isso e que te pedi para ficar, no entanto, eu te imploro, vá embora da cidade e não olhe para trás. Eu comecei isso e eu irei terminar.
   Realmente me senti invencível por grande parte da vida, principalmente após quase todas as paredes voltarem ao pó. Mas saiba, mesmo em pouco tempo, nunca me senti tão invencível quanto ao seu lado.
   Espero que isso baste.

   Sempre, Oliver Madraga."

* *

Eu sempre admirei os beijos cinematográficos na chuva. Sempre admirei o fato de que o casal nunca ficava doente depois, talvez porque o amor fora mais urgente que as gotas geladas que caíam do céu, em uma tarde fria de segunda-feira, que não os impedia de se esquentarem com o toque um do outro.

Ou talvez por ser apenas ficção.

Mas ainda assim, era admirável pensar na possível existência de um amor que fazia você viver mais fora do corpo do que dentro. Porque, estar ali, grudado em outra pessoa, mostrava que seus sentimentos eram capazes de transcender qualquer universo paralelo que tentasse impedir os lábios colados e as peles que formavam uma costura sem etiqueta, algo que não deveria existir, jamais, pois vocês sempre se encaixariam sem rótulos e com uma perfeição claramente imperfeita.

Uma perfeição em que algumas linhas sairiam da costura, mas isso não os desanimaria, mesmo quando o sol retornasse e o casaco fosse com urgência retirado e deixado de lado, vocês sempre acabariam nus em uma cama, produzindo suor e fazendo juras de um amor que transcenderia também as estações do ano.

Tornar-se Janeiro (em pausa)Tahanan ng mga kuwento. Tumuklas ngayon