Capítulo 4

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   Abrir os olhos não foi uma tarefa fácil e muito menos encarar os corpos na direção deles. Eram três homens, altos e encapuzados.

   Eu acredito que o universo me considera uma piada. De verdade. Tudo que eu queria era fugir e recomeçar. E agora estou aqui: arrumando novos problemas. Novos problemas no fim do mundo onde não deveriam existir problemas assim.

   "Olá, J. Tudo bem?" o homem posicionado no centro me perguntou.

   Procurei usar minhas mãos, mas notei que eles tomaram o cuidado de prendê-las na cadeira em que eu estava sentada.

   "Óbvio que NÃO, né porra?" - eu disse enquanto tentava esclarecer onde exatamente eu estava.

   Era uma espécie de contêiner, sem janelas e apenas uma porta gigante. Era frio e úmido. Era assustador, mesmo que eu tentasse não pensar muito nisso.

   "Nós não iremos te machucar" outra voz disse, dessa vez mais carregada de empatia - "Só queremos garantir que você se adaptou a cidade" - ele continuou.

   "O que vocês querem? eu não tenho dinheiro" - eu digo, aparentemente provocando risos.

   "Não queremos seu dinheiro" -  o terceiro homem diz - "Apenas a sua lealdade"

   Então uma quarta voz, familiar, adentrou o ambiente e disse: "Podem soltá-la".

   Imediatamente eu sinto minhas mãos sendo libertas, mas a fraqueza toma o meu corpo e não consigo me levantar.

   A luz fraca que iluminava o contêiner me deu algumas dicas de com quem eu tinha me metido. Oliver.

   "Fique tranquila, só iremos conversar, como fizemos da última vez, lembra?" - ele disse, logo depois segurando meu queixo.

   "O que você quer comigo?"

   "Ah, J. Você é tão diferente. Tão peculiar no meio de pessoas tão desinteressantes. Não me denunciou quando contei de minhas propostas, e quero saber o por quê."

   "Não é meu problema."

Ele deu risada.

   "As pessoas daqui não pensam assim."

   "Tenho certeza que você pode comprá-las, assim como deve ter feito com as autoridades locais."

   Ele se aproximou o suficiente pra colar seu rosto no meu. Tudo estava quente. Quente em um ambiente frio. Eu só queria saber qual o meu problema para pensar uma besteira dessas nesse momento.

   "Estou feliz que você é diferente, Janeiro" - me assusto ao escutar esse nome - "Fique tranquila, sei que não é seu nome verdadeiro. Mas eu gosto. É um mês bonito, caloroso e também cheio de surpresas" - ele se aproximou mais, se é que dava para fazer isso - "como as tempestades".

   Acordei entre os chicletes colados no chão e as camisinhas usadas jogadas no mesmo. Era um sonho. Eu estava bem, certo? Era apenas um sonho, tinha que ser.

   Mandy estava parada na minha frente, desesperada e tentando me acordar.

   "Você não usa drogas né, J?" ela me disse após eu confessar o meu possível sonho. Eu neguei com a cabeça.

   "Isso é loucura. Que eu saiba o bar não foi comprado recentemente e não existe nenhum Oliver na cidade." - ela parecia estar realmente preocupada.

   "Mandy, eu posso te garantir que conversei com esse cara. Eu não estou louca."

   "Louca ou não, você matou metade do expediente" - ela tentou sorrir da melhor forma possível - "Mas tudo bem, eu te cobri, vai para a casa, já está na hora de fechar o bar."

   "Obrigada, eu fico te devendo uma"

   Mandy piscou para mim e disse: "Irei cobrar, J". Tenho certeza que naquela cidade a Mandy era outra pessoa que umideceria calcinhas. Seus cabelos loiros formavam ondas que percorriam seu rosto até cair suavemente em seus ombros. Seus olhos eram cor de mel e sua voz tão doce quanto. Me perguntei o que um ser humano tão gentil passara para chegar até li. No entanto, quem sou eu para questionar as decisões dos outros?

* *

   Nada foi fácil durante aquela semana. Ler me lembrava Clarice e Clarice me lembrava A Hora da Estrela, um livro que me levava diretamente ao banheiro do Bar 21.

   Trabalhar nesse mesmo local, obviamente, me lembrava da existência de seu banheiro e o seu banheiro me lembrava do possível dono: Oliver.

   Eu ansiava por nosso próximo encontro, mesmo que fosse tudo criação da minha cabeça. Eu queria conhecê-lo. Eu queria mais.

   As semanas se passaram e os sonhos eróticos não. Ele estava ali, todas as noites, entre minhas pernas. Eu estava enlouquecendo e não tinha ninguém para conversar a respeito disso. Eu estava sozinha e isso me incomodara pela primeira vez desde que cheguei na cidade.

   A rotina passou a me irritar e a dona Leila passou de insuportável para um inferno de mulher.

   Certa manhã, cansada de seus olhares, decidi matar a minha curiosidade e não a mulher irritante que estava sentada ao meu lado na mesa.

"Dona Leila, a senhora conhece algum Oliver pela cidade?"

    Ela me olhou indignada e fez o sinal da cruz. É, talvez eu devesse ter ficado quieta.

   "Não fale esse nome em minha pensão."

   "Eu poderia saber o motivo?"

   Ela segurou minhas mãos, fingiu um quase desmaio e fingiu também que não era de fofocar assuntos pessoais dos moradores da cidade. Após alguns minutos, ela começou a me contar tudo que sabia. Era fácil. Elas sempre eram fáceis de manipular. Principalmente as que achavam que estavam me manipulando. Cresci ao redor de mulheres assim.

   "Dizem que existe um homem que é dono  de praticamente a cidade toda" - ela suspirou - "Ninguém sabe o rosto dele e quais são suas intenções ou propriedades. Acreditamos que ele vive na casa mais luxuosa, quer dizer, a única casa luxuosa da cidade..."

   "Seus empregados o chamam de Oliver. Oliver Madraga".

Oliver Madraga: dono de praticamente a cidade toda.

   Aquilo fazia sentido, certo? Ele era um homem poderoso. Talvez o mais poderoso da cidade. Poucos conheciam seu rosto e isso justificava Mandy não o reconhecer. Isso justificava muita coisa.

   Mas e o meu suposto sequestro? Eu estava enlouquecendo ou realmente o vi pela segunda vez fora dos sonhos? E o que ele queria comigo?

   De repente, a voz de um dos capangas ecoou em minha cabeça: "não queremos o seu dinheiro, apenas a sua lealdade".

Tornar-se Janeiro (em pausa)Où les histoires vivent. Découvrez maintenant