Carne Profanada

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Ariele Gottardo


São Paulo, maio de 2019, após as "compras".

Havia encontrado seu irmão, Raeno, no estacionamento do prédio dele. De lá saíram com o carro da senhora do apartamento 69. As principais ruas paulistas estavam abarrotadas de veículos. Seu irmão dirigia seguindo pelas menos usadas, onde era possível o carro se locomover. Ele ia com uma velocidade máxima de quarenta quilômetros, provavelmente numa tentativa de não atrair muita atenção. Vez ou outra era possível ver alguma daquelas criaturas na rua, mas o veículo oferecia boa proteção, e, talvez porque sua oração tenha funcionado, aquelas coisas estavam muito mais pacíficas do que Ariele se lembrava.

Era comum que corressem animalescamente rugindo e despedaçando tudo pela frente, com as veias saltadas e os olhos cheios de sangue. Mas não hoje, naquela sexta-feira não. Eles mal se moviam, quase silenciosos e meio mórbidos, num dia atipicamente frio. Ficavam olhando para cima, os olhos possuíam algo de estranho, um brilho sangrento, quase como os mosquitos, as bocas debilmente abertas, os corpos inertes, parados em pé, olhando para o céu e murmurando gemidos indistintos.

MounMoun silvou olhando pela janela.

Rapidamente Ariele o virou para outra direção, o acariciando e torcendo para que ficasse quieto, já para desviar a atenção do irmão, disse em tom casual:

—Você viu a sua vizinha?

Silêncio. Após um tempo Ariele imaginou que seria ignorada, não seria novidade, quando Raeno não gostava de um assunto, o achava irrelevante ou entediante simplesmente a ignorava. Mas...

—Você quer dizer a senhora Carmen? — murmurou meio irritado.

—É, bem, a do apartamento ao lado. Você sabe de quem estou falando.

A rua em que o veículo entraria se mostrou lotada de caminhões tombados, Raeno engatou a ré, olhando para trás do carro.

—Sabe irmãzinha, as pessoas têm nome.

Ariele sentiu também que estava acariciando MounMoun com força demais, a unha quase cravada, aliviou a mão, que suava frio, respirou fundo e resolveu simplificar.

—De quem era o carro?

—Da senhora Carmen.

—Uhum, e você a viu? — retomou Ariele.

—Sim, roxa como uma uva. Mas quem dera o cheiro dela fosse o da uva... —Raeno adquiriu uma expressão de desprezo e nojo tênue, uma diferente do que ela estava habituada a ver nos lábios do mais velho, era nojo real, não aquele típico destinado aos demais.

Ariele lamentou internamente. Esperava alguma surpresa positiva para variar. Era uma vã e inocente esperança, bem sabia, já que ninguém cederia o carro ficando para trás. Ainda assim...

—Que pena, faz muito tempo que não vejo pessoas de fora sabe, sinto falta.

Ele acenou com a cabeça, observando atentamente o semáforo que após a queda se transformou em quebra-molas na pista, e escolheu outra rua.

—Mas não sinta tanta falta assim. Sabe irmãzinha, olha em volta. Essa é São Paulo, a maior cidade do país. Se aqui está assim, é porque a vida mudou. Não encontro viaturas de polícia, sinais do exército ou de alguma organização.

—Bem... — ela ponderou por um momento — mais um motivo para encontrarmos pessoas, estamos desprotegidos sem a polícia, em número tão pequeno.

Chegaste ao fim dos capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jan 26, 2019 ⏰

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