Porquê?

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Ariele


São Paulo, apartamento de Raeno Gottardo.

As coisas estavam tão loucas ultimamente. Há duas semanas estava na sua lojinha e agora estava aqui, no apartamento do seu irmão mais velho... vivendo escondida e com medo. Sempre achara A Grande São Paulo cruel, mas isso...

Estava jantando com seu irmão Raeno. Ele era tão elegante de se contemplar, sempre bem vestido, cheiroso, e com a beleza de um homem com descendentes italianos, beleza essa que ela não acreditava ter herdado, mesmo que algumas pessoas lhe dissessem o contrário. A pele dele era alva, com uma barba delineada que começava a apresentar inconstâncias depois de alguns dias confinado ali. Quando ele tirou sua atenção do prato e a encarou nos olhos, seu rosto foi iluminado pela luz da vela e ela pôde contemplar toda a sua beleza e austeridade, poderia ter sido um modelo, seus olhos eram como amêndoas. Não sabia por que aquele homem ainda era solteiro aos trinta. Mentira, sabia sim. Inexplicavelmente começou a sentir medo.

—Não vai comer irmãzinha? Eu preparei o jantar com tanto amor. — Disse com suavidade, arqueando uma sobrancelha e dando um sorriso cortês.

Já entendi, não sei cozinhar, mais uma coisa para a lista de como falhei, pensou Ariele. Mas o que disse foi um tímido "Vou sim, obrigada".

Ele cortava com acuidade o frango — A carne está acabando, não vai durar mais do que amanhã— Levou uma garfada a boca e voltou a lhe encarar.

Eu sei que minha presença te atrapalha. Por que não diz logo o que pensa? Refletiu e levou a taça de vinho tinto aos lábios e disse:

—É mesmo? O que sugere?  — Fez um ruído de sucção no vinho maior do que precisava e bateu a taça na mesa com vigor, querendo mostrar uma confiança que não sentia mesclada com uma raiva que sentia.

Raeno Gottardo se limitou a esboçar um risinho com a cabeça baixa, olhando para o prato.

—Vamos, pode dizer, tenho certeza de que a sua irmãzinha pode entender, se você explicar devagar.

Ele limpou os lábios com guardanapos e se recostou na cadeira, com uma expressão neutra.

—Súbito... — Disse dando uma risadinha —Você se irrita do nada irmãzinha. Sim... De repente... Foi assim que tudo isso começou, não foi? Subitamente... Sim... Não...— Agora sua voz era quase um sussurro — não foi subitamente, houve sinais, sim, sinais que ignorei, mas creio que dada à gravidade das coisas pode-se chamar de súbito...

—Já sei o que você fará! — Disse ele de repente, com os olhos brilhando enquanto Ariele segurava as lágrimas nos seus, o medo era um verme rastejante sob sua pele, lhe enchendo de calafrios —Você irá fazer comprinhas na padaria aqui em frente.

—Raeno... não...por...

—De manhã.

—Eu sou sua irmã, por favor... — Ela implorava

—SIM! Exatamente! Mas nem parece, não é?!Você com sua lojinha de roupas, sem fazer nada da vida com vinte e sete anos... E agora você me parasita no meu próprio lar! — Seus olhos brilhavam perigosamente, o sorriso distorcia-se em raiva e risinhos histéricos, saliva saltitava dele como faíscas de veneno. —Eu te salvei. Não foi? Deixei meu trabalho, que diferentemente do seu, não é tão mocambo para eu poder ficar parando quando quiser, e fui te buscar.

—Eu ia morrer!

—E nem isso consegue fazer sozinha! — Bradou jogando seu prato longe, o som de porcelana se estilhaçando fez MounMoun, o gatinho da Ariele, descer da estante ao lado e silvar de medo

—Você vai conseguir comida para nós, sozinha, amanhã. — Disse se acalmando, e seu tom era de quem terminava um assunto — Ou... teremos de nos virar como der.

Dizia isso enquanto apontava a faca para o gato. Ariele começou a chorar, chorava tudo que vinha segurando, não queria parecer fraca na frente dele, não mais fraca do que já parecia... Mas as lágrimas simplesmente surgiam, e ela sentiu seu rosto arder de vergonha e ficar empapado, pôs as mãos na face para preservar algum vestígio de dignidade. Já soluçava descontroladamente... Por quê?Por quê?Por que as coisas tinham que ser assim?

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