Capítulo III - Aquela que sonha com o amanhã

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Uma cidade universitária sempre possui ótimos lugares para se tomar um drink. Sejam bares requintados ou um barzinho "copo sujo". Amanda tinha o seu favorito, o famoso "Jardim do Éden" ou simplesmente "Éden" como a maioria dos frequentadores chamavam. De fato, um lugar agradável com um toque lúdico e surreal. Um casarão antigo de dois andares, no primeiro, as paredes foram derrubadas deixando apenas as colunas enfeitadas artisticamente pela mão do próprio dono, um escultor excêntrico, As mesas na maioria de apenas quatro cadeiras ficavam espalhadas pelo salão com velas que pareciam nunca se apagar. Um palco com direito a cortinas vermelhas estava à disposição de artistas locais e suas "invenções". A decoração era na maioria desses mesmos artistas e amigos do dono. Quadros de temáticas totalmente diferentes ou mesmo esculturas ficam espalhadas pelo lugar, algumas tinham etiqueta com um preço demasiadamente alto, parecia de propósito para não serem vendidas. No segundo andar tinha-se o "Ateliê" do dono e sua casa, mas poucos "Vips" podiam subir até lá.

Nesse ambiente frequentado por pseudo-intelectuais, vagabundos talentosos e artistas excêntricos, Amanda se sentia em casa. Gostava da música, o rock dos anos 70, as luzes das velas, as pessoas, das esculturas e dos quadros, em especial aquele que lembrava sua mãe, uma mulher vestida com roupas do século XVIII tocando um piano.

Nas noites de quarta e sexta, Amanda subia ao palco. Todos a olhavam encantados, seus cabelos negros eram curtos até o pescoço. Tinha olhos felinos realçados pelo lápis preto e lábios sensualmente pintados de vermelho. Seu corpo era esbelto mesmo sendo magra, gostava de usar calças de couro apertadas e camisas leves de seda sobre o corpo. Tocava seu violino que apesar de não dominar muito bem agradava a todos. Gostava de imaginar que sua mãe estava contemplando sua arte e se sentia acariciada pelo carinho materno. Ali todos os problemas, todas as pessoas odiáveis, todas as dores sumiam e ela podia sorrir. Mas em uma noite de quarta-feira, Amanda planejou tocar uma música triste, pois era aniversário da morte de sua mãe. Havia apenas quatro pessoas no "Éden", um casal emburrado que engoliam um vinho seco, um senhor amargurado que afogava sua dor nos copos de rum e um homem que apenas fumava e olhava para a garrafa de vodka.

O casal enfrentava uma crise. Katarina disse ao seu namorado Ulisses que achava que estava grávida, para ele uma aterrorizante notícia. Não estava nem há um ano na faculdade. Seus pais não iriam perdoá-lo, pois já arcavam com todas as suas despesas, queriam apenas que se formasse logo. Já os pais de Katarina eram cristãos tradicionalistas, poderiam desertá-la por conta do pecado. Eles não sabiam o que fazer, o medo os deixava ignorantes um com o outro, e depois de muito discutirem ficaram no bar em silêncio bebendo um vinho que embora delicioso, descia com dificuldade.

O senhor que se embebedava era o detetive de policia Richard Thomas, um homem amargurado, que não teve tempo de dar a devida atenção para sua única filha, pois quando decidiu largar a polícia, Se envolveu em uma trama que custou a vida dela. Um serial killer a matou em uma espécie de ritual satânico, Richard nunca mais foi o mesmo, Seu cabelo e sua barba cresceram pelo descuido, ele usava roupas escuras e passou a dedicar sua vida a investigar os mistérios que nenhum outro policial do departamento levava a sério. Ele "viu" coisas, agora anda armado com uma "Linebaugh", uma arma cara feita por encomenda. Dizem que é usada para caçar búfalos no Cabo da África.

O homem que apagava seu décimo cigarro era John. Se conhecesse o detetive Richard, poderiam se embebedar juntos, pois John também perdeu sua filha, mas ao contrário do detetive, ele se dedicou muito à filha, mas Deus a tirou dele cedo demais. "Aquela maldita doença sem cura", ele murmurava, quantas vezes ele pediu para ser ele e não aquela linda criança a morrer daquele jeito, mas não foi a vontade de "Deus" dizia sua mulher. Hoje não estão mais juntos, os diferentes pontos de vista sobre esse Deus os fizeram não se suportarem mais. "Mas do que valeu todas aquelas orações?", Ele murmurou mais uma vez e começou a chorar.

Amanda sabia a historia de cada um deles, embora nunca os tivesse visto em sua vida, isso porque sonhou com aquele dia. Sonhou com aquelas pessoas, viu a filha linda que vai nascer e se chamar coincidentemente de "Amanda" que significa "Digna de ser amada", nome escolhido pelos pais de Katarina, já que o sobrenome seria dado pela família de Ulisses. Desesperou-se vendo as lembranças de Richard e o assassinato de sua filha. Emocionou-se com a morte da filha de John e com o seu destino, virar um anjo que protegeria a própria mãe. Por fim, que todos eles se sentindo perdidos iriam ao Éden aquela noite de quarta-feira e mais uma vez os sonhos se transformaram em realidade.

Ela não tocou a música triste, colocou toda sua energia nas notas, parecia em êxtase tocando uma musica em alto tom que quebrou a indiferença de todos que olhavam para ela de maneira surpresa ou mesmo assustada. A música mudou todo o clima do lugar. O barman sorriu e começou a se balançar. A garçonete lembrou-se de seu sangue cigano e começou a dançar girando como fazia com seus familiares nas noites de festa. O casal se olhou e sorriu achando graça daquilo. Richard não encheu mais seu copo e John enxugou suas lágrimas.

Amanda terminou a canção com uma nota que parecia rasgar o véu da atmosfera de sonho e quando os funcionários bateram palmas junto, Ulisses e Katarina também o fizeram. Richard permaneceu apático olhando para Amanda e John arriscou bater algumas tímidas palmas em seu reconhecimento.

"Diante da dor, podemos ter duas posturas, chorar por aquilo que não podemos mudar ou seguir em frente, hoje, eu ia tocar uma musica triste em homenagem a minha falecida mãe, mas preferi uma canção alegre como ela era, tenho certeza que assim ela deve ter apreciado mais onde quer que esteja".

Foram as palavras de Amanda antes de descer os três degraus da escada do palco. Queria deixar uma mensagem para todas aquelas almas atormentadas, e sabia que eles se identificariam com aquilo, mas que talvez não fizesse diferença alguma. Guardou o violino e se foi solitária pelas ruas escuras antes que alguém viesse cumprimentá-la.

"E o que virá amanhã?" Ela se perguntou nos pensamentos, mas diferente de todos, Amanda não precisa esperar tanto para saber, basta dormir e sonhar.

Entre o céu e o inferno - A gênese do fimWhere stories live. Discover now