CAPÍTULO 21 - O HOMEM QUE USURPOU A NAÇÃO

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— Tira o capacete — disse ela. — Agora.

Ele tirou. Ao mesmo tempo, Kristina tirou o dela, e os dois ficaram cara a cara, iluminados somente pelo luar que entrava pela janela.

— Você veio me matar? — A voz de Sarto era ainda mais robusta ao vivo.

Kristina retesou o braço. Soltou a arma. Chutou-a para longe. Era como se os movimentos não passassem por um filtro de razão. Ela só conseguia se lembrar de toda a violência pela qual passara até chegar ali e o corpo agia conforme os sentimentos que a memória despertava.

— Não — disse ela. — Eu vim pedir pro senhor renunciar.

Ele permaneceu sério. Ela idem. Mas algo nos olhos dele indicava certa desconfiança.

— Por que eu deveria renunciar?

Até as cordas vocais de Kristina eram apenas sentimentos e adrenalina. As palavras saíram de suas entranhas e fluíram com uma facilidade estranha até a boca:

— Pela paz... Meu nome é Kristina Lan Fer e eu tenho dezoito anos. Eu ainda não era nascida durante a guerra civil, mas conheço muita gente que era, e mesmo se eu não conhecesse, não precisa ser nenhum gênio pra saber como aquela época foi horrível. E eu acho que o senhor fez muito bem em intervir. Eu acho que realmente esse foi um primeiro passo pra um Kailan melhor. Mas foi isso: um primeiro passo. Do jeito que o seu governo anda, Marechal, vai ser muito difícil as coisas darem certo. Porque eu e a população de Kailan queremos a mesma coisa que o senhor: paz, segurança, união. Mas a gente também quer liberdade, e a gente vai lutar por ela.

— Você não concorda com meus métodos — resumiu Sarto. — Mas você entende, de verdade, o que eu venho fazendo nesse país?

Quando Kristina percebeu que ele não responderia à própria pergunta, mas que, ao contrário, esperava uma resposta dela, quase gaguejou. Então disse a verdade, munindo as palavras com a maior veemência de que foi capaz, e por ser verdadeiro o discurso voltou a ser fácil:

— Do seu ponto de vista, não.

Mas o homem não se inibia.

— Aos poucos, Kristina, eu venho implantando a verdadeira revolução. O maior bem pro ser humano sempre foi a felicidade, por isso a verdadeira revolução deve ser aquela capaz de nos garantir esse bem. Mas é impossível chegar à revolução sem ordem, e a ordem consiste em duas coisas elementares: vigilância e castigo. Com esses dois funcionando bem, conforme o tempo avança, mais as pessoas têm medo de quebrarem as leis. Falta liberdade, eu tenho que concordar com você, mas ou você tá seriamente enganada ou tá tentando me enganar, porque a população de Kailan não quer liberdade. O povo aceita a falta de liberdade. É por isso que quem invadiu meu quarto hoje foi você, e não uma multidão. Eles aceitam essa falta e é assim que conseguem ser felizes.

Ele deu um passo na direção dela. Ela pensou em dar um passo para trás, mas não queria dar a entender que estava recuando. O presidente continuou, como se tivesse ensaiado, ou como se repetisse aquelas ideias tantas vezes que já sabia articulá-las de cor:

— Você vê necessidade de lutar contra mim porque você é infeliz com a situação que eu sustento, mas você só é infeliz porque acredita que pode ter a paz e a liberdade juntas. Mas não pode. É isso: nós temos que escolher entre a paz e a liberdade, e eu não vejo por que essa escolha é tão difícil pra você. Me diz quando você soube realmente o que é ser livre. Eu creio que nunca. Pouquíssimas pessoas no mundo já tiveram a oportunidade de saber. Mas você com certeza já soube o que é ser feliz, e com certeza foi ótimo em todas as vezes. É a paz, e não a liberdade, que vai consolidar o meu plano final pra Kailan: a felicidade. E isso é um plano a longo prazo. Eu preciso de mais tempo no poder, e então seus filhos ou no máximo seus netos vão morar em uma sociedade perfeita. Eles vão ser mais felizes do que você jamais foi. Eu só preciso da sua ajuda pra isso, Kristina.

AO NOSSO HERÓI, UM TIRO NO PEITOWhere stories live. Discover now