Capítulo 27 - Estranho silêncio

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O silêncio que ela deixou era estranho.

Suspirou, deixando o escapar o ar pesado. Faziam-se quase três meses que Aika se fora, levando consigo todos aqueles pensamentos loucos, deixando o Guardião de Suzaku mergulhado no mais estranho silêncio. E mesmo tendo passado a vida inteira acostumado a barulhos, a vozes malignas e sussurros na escuridão, aquele silêncio não o trazia alívio algum.

De fato, Kurikara nunca fora acostumado ao silêncio. Quando criança, apreciava o assovio do vento que cortava o Vale das Montanhas Vermelhas, seu primeiro lar. Havia o som de vida, de carroças, animais, vendedores, crianças e mais crianças gritando e correndo, adultos e jovens conversando e trabalhando. Havia também o som da floresta, com seus riachos, pequenas quedas d'água, seus pássaros e cervos...

Depois, quando todos esses sons foram substituídos por fogo e ódio, ele se viu em mais outro mar de sons. Era como todos os anteriores somados ao bater de asas. As asas de seus companheiros, assim como as deles, arrepiadas ou abaixadas, a toda hora cortando o ar ou só passando sobre a grama. E quando os pesadelos o perseguiam a noite, ele se acalmava e era embalado pelo som da respiração de seus novos entes queridos ao seu lado.

Ele voltou ao som do Vale outra vez. Lá, ele se entregara a algumas vozes. Vozes que esquentavam seu coração dia e noite e que, quando não ouvia, deixavam-lhe confuso, sentindo-se só. Conheceu então uma bela voz que aqueceu seu coração solitário e o envolveu em noite de amor.

Então, veio o pior de todos os sons. O som do fogo que devora vidas, lambe casas, desintegra pele e ossos. Junto a isso, veio uma voz que o atormentava a cada segundo e nem em seus sonhos se via livre. Era a voz que um dia o amou chamando-o de assassino, de traidor, de monstro, mandando-o ferir seus novos amigos. Amigos que vieram muito tempo depois, tão diferentes dele, cujas vozes tentavam mantê-lo de pé; eram quem a voz maldita mais queria calar.

Por último, veio a voz de Aika. Ela surgiu no meio daquela confusão e espantou os sons da morte que o perseguiam. Seu eu foi despertado aos poucos pelo chamado dela, até que o mal foi pouco a pouco transformado em um sussurro.

Entretanto, Aika não era uma voz tranquila como brisa. Com ela vinham memórias estranhas, pensamentos dos mais aleatórios e entrecortados possíveis, tão confusos quanto tudo que começou a viver desde que ela surgira em seu caminho. Mas Kurikara se acostumou à tempestade que era Aika. Era uma tempestade que vinha de repente e lhe deixava uma calmaria boa. Às vezes era uma chuva companheira que escutava seus segredos e guardava seu coração. Ela o libertou do medo de continuar vivo e ele despertou nela a força que nunca imaginou possuir.

Até que ela se foi.

Acharam que conseguiriam se falar, combinaram conectar suas mentes através dos poderes dos deuses toda sexta-feira, mas por mais esforço que fizesse, ele não conseguia. A gema cor de ametista em sua pulseira que tinha o fio grosso e escuro do cabelo dela permanecia sem qualquer sinal de vida. Dias e mais dias sem nenhum sinal de sua amiga, como se ela nunca tivesse existido.

O silêncio que ficou, sem a maldição e sem a presença de Aika, era estranho demais para ele. Especialmente no palácio, onde todos deveriam dormir na mesma hora, onde o som das tochas e do fogo eram baixos e vazios, onde as respirações de sua querida Riko e precioso Iruka estavam distantes demais para que pudesse reconhecer.

Kurikara estava odiando aquela falta de barulho. Mesmo ele, sempre tão paciente, sempre tão sereno, sua voz calada no mar de sons, via-se então angustiado por ter "paz". E digo paz entre aspas, pois, desde que o Orbe de Fogo chegara àquela capital, uma confusão vinha atrás de outra. Tentativas de tomá-lo, ataques de magos, demônios atraídos pelo seu poder. Se já era difícil mantê-lo puro, com tantos interferindo e cobiçando-o, aquela tarefa se tornava um verdadeiro suplício.

Aika - O Tabuleiro do Oráculo (A Saga Aika #2) [degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora