Capítulo 26 - Velha Amiga

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A voz do piloto de avião anunciando o pouso despertou Lis de mais um pesadelo. Estremeceu, tentando respirar fundo e apagar a lembrança daquele barulho, do sangue em seus braços, dos gritos de Shinta. A memória mais cruel com sua querida amiga.

A comissária de bordo anunciou em inglês e japonês a descida, e outros passageiros despertaram. Seu colega de banco perguntou em japonês se ela estava bem, notando a mulher negra e de cabelos encaracolados encolhida. Tratou de responder no idioma local que só estava sofrendo de "medo de avião", e tranquilizou-o ao aceitar um copo de água. Como eram gentis os japoneses!

Na mão esquerda segurava um pesado chaveiro de metal. Nele estava impresso o desenho do herói Kinryuu, embora as marcas do tempo já desgastassem sua pintura. Aquele havia sido o último presente que ganhara de Aika, há cerca de cinco anos, antes de ter sido mandada para longe dela, do outro lado do mundo. Tudo por culpa daquele terrível dia...

Quando o avião pousou, alongou-se e tratou de pegar sua bagagem. Era sua primeira viagem ao Japão e só isso deveria ser o suficiente para justificar seu frio na barriga. Só que havia mais uma coisa: após anos de separação iria reencontrar Aika Akatsuki dos Anjos, sua parceira de madrugadas de animes e companheira de todas as horas. Seis anos mais jovem que ela, como uma irmãzinha adotiva. A menina que conhecera graças a um personagem de anime/mangá e que havia sido bruscamente tirada de seu convívio por causa de uma bala perdida.

Era quase impossível escapar daquelas memórias. Se não tivessem se aproximado daquela farmácia, Aika não teria tido chances. O tiro de alto calibre atravessou seu ombro direito, quase destruindo-o. Aika desmaiou pela dor e Shinta foi tomado de pânico. Foi socorrida ali mesmo pelos funcionários, cosplayers que desciam a rua e viram tudo e depois por policiais, atendida em um pronto socorro em outro bairro. Lembrava-se do choro da senhora Hinata, mãe de Aika, ao ver o estado da filha. A durona japonesa que vivia no Brasil desabou ao vê-la quase perder a vida. O pai deles, o senhor Miguel, chocar-se com o relato do filho. E Lis só pôde assistir.

Aika sobreviveria, mas temiam que não pudesse mais desenhar. O serviço público de saúde podia tê-la salvado do pior, contudo, demoraria muito até ela mover o braço de novo devido a superlotação da fisioterapia e a falta de medicamentos. Os pais de Aika não tinham condição de pagar algo no particular e a família Toraya também não possuía tantos recursos. E mesmo assim, Aika tentava sorrir. Mesmo impedida de fazer o que mais amava, ria para mãe, para Lis, para Shinta: "Hey, virei estatística! Até apareci na TV!" – dizia, tudo para não preocupá-los, para parecer forte.

– Irmãzinha... – suspirou.

Saiu do saguão a passos lentos, nem parecendo uma Otaku que colocava os pés no país de seus sonhos, tudo porque não conseguia parar de pensar no bem-estar de Aika. Agora, não havia mais qualquer amarra; sua faculdade chegara ao fim e conseguiu um bom emprego como professora de português para filhos de japoneses mestiços. Nada poderia separá-la de Aika novamente.

Desejava revê-la mais do que nunca, porque sentia que havia algo de errado com sua amiga. E-mails estranhos, manchas pelo corpo que ela tentava cobrir, sumiços... tinha que descobrir o que Aika escondia. Conhecia seu orgulho característico, sabia que ela não falaria.

Como esperado, alguns japoneses a cochichavam ao vê-la. Não bastava ser mais alta, a cor de sua pele e seu cabelo a destacavam no mar de rostos brancos e olhos puxados. Ergueu a cabeça, puxando a mala colorida e ajeitando o cachecol para proteger-se do frio. Seus pais, filhos de japoneses, a ensinaram muito bem o idioma e o que deveria fazer, desde que havia sido adotada ainda pequena. Nunca se sentiu tão grata a eles por permitirem ir ver sua amiga e conhecer a terra natal de seus antepassados. Tinha um visto que duraria o tempo necessário e quem sabe, poderia tirar até o permanente, dupla cidadania. Tudo porque sentia que precisava rever Aika.

Foi quando notou uma jovem japonesa morena com roupas estilo gótica-suave segurando uma plaquinha escrito "Lis" em katakana ao lado de uma bonequinha chibi, uma caricatura de Lis. Um nó em sua garganta se formou no mesmo segundo.

Parou a quase dois metros de distância de Aika. Ela estava mais alta e menos magra, para sua surpresa, o rosto com mais cor e carne do que da última vez que a vira pela webcam. Notou seus lábios vermelhos tremerem em palavras que não saíram. Uma delas tinha que dar o primeiro passo e foi Lis quem o fez, largando a mala e abraçando-a.

 Uma delas tinha que dar o primeiro passo e foi Lis quem o fez, largando a mala e abraçando-a

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Aika continuava sendo menor que ela. Lembrava-se do último abraço que deram, com cuidado para que ela não sentisse mais dor no ombro baleado, antes que Aika partisse de vez para o Japão. O chamado do voo foi a única coisa que a impedira de continuar agarrada à sua pequena irmã de mentirinha.

Foi com os olhos embaçados a viu partir, com a ajuda de um funcionário. Acenando com o braço esquerdo para seus pais, para seu irmão e para ela, gritando: "Eu vou voltar! Eu vou voltar como a maior mangaká que este mundo já viu!".

A decisão drástica de Hinata em mandar Aika para viver com sua família japonesa foi um choque para Lis. Mas lá, eles prometeram todo o tratamento necessário para recuperar seu ombro, para que pudesse desenhar de novo. Teria um bom ensino e renda o suficiente para que não vivesse mais aos trancos e barrancos, no país onde nasciam suas obras preferidas. Era para Aika estar feliz, ativa e saudável... o que não aconteceu.

Em algum momento, Lis percebeu que Aika parou de falar sobre os problemas que sofria. Ela mal contou o que houve, o que a fez ir para outra cidade, fugindo de casa. E ao encarar sua amiga ao vivo depois de anos, segurando no ombro recuperado, suas inúmeras indagações se amontaram na garganta e nenhuma saiu.

– "Ce" tá mais alta – deixou escapar Aika, em português. – Senti tanta saudade!

– Eu também – disse, abraçando-a de novo. – Eu também, minha irmãzinha!

Ela não fazia ideia de tudo o que houvera com Aika, mas faria o impossível para devolver a ela aquele brilho tão fantástico que vira pela última vez.

Quanto a Aika, um único sentimento gritava em seu peito: não estava mais sozinha.



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Próximo capítulo: Estranho Silêncio

Aos que ficaram confusos, a numeração está seguindo como continuação do livro 1, como nos volumes de animes e mangás :D Sejam bem-vindos de volta!

Abertura desse livro: Amore, da banda Babymetal

Aika - O Tabuleiro do Oráculo (A Saga Aika #2) [degustação]Where stories live. Discover now