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"Só o inimigo não trai nunca" Nelson Rodrigues

Kayla


Amaldiçoada. Danada. Réproba.

Alguns erros custam caro, e o adultério sempre foi oneroso. Em algumas civilizações antigas era passível de apedrejamento; em outras, de morte. Ainda que quando eu o cometera já não fosse um crime, era um pecado para muitos imperdoável e, de modo velado, sujeito à condenação, ao ostracismo. E talvez, em muitos sentidos, isso fosse a morte.

Eu já estava na divisa entre Estige* e Aqueronte, cara a cara com Caronte, o barqueiro que me conduziria ao cemitério, ou melhor, ao Inferno. Porém sequer tinha a moeda para pagar pelo trajeto, sinal de que ainda vagaria por anos a fio, presa da minha alma marginal. Não bastasse a vida miserável a que eu tinha sido condenada ao ser gerada no ventre daquela mulher de quem eu só herdara o dom de destruir, estava destinada a ser uma alma penada. Ou talvez eu já fosse, posto o estado em que me encontrava.

O ônibus estava vazio, mas, logo que entrei, fui defrontada pelo fedor de fritura, cheiros de corpos mal-lavados e perfume barato. Com o olfato ampliado pela minha condição, tudo empestava.

Cobri a boca com as mãos evitando despejar o almoço e procurei um lugar perto da janela. Minha cabeça doía, como sempre no último mês, e eu podia jurar que havia uma adaga enterrada em minha nuca.

Tinha saído do posto de saúde com o desespero ancorado ao peito; um diagnóstico de hipertensão crônica; desnutrição; um descolamento de placenta importante e a recomendação de repouso absoluto por pelo menos um mês. O prognóstico não era nada bom.

Logo quando, após semanas procurando emprego, eu tinha conseguido algo. Começaria no dia seguinte, mas como poderia comparecer ao posto de trabalho portando um atestado médico antes mesmo de entregar minha documentação para registro? Mais uns dias e eu não conseguiria esconder a evidência da minha condição. O trabalho era duro e eu não poderia me arriscar sequer por uma semana. Todas as esperanças de me recuperar financeiramente, de sobreviver, debandavam.

Havia feito uns bicos nos últimos quinze dias, trabalho pesado, que havia agravado meus mal-estares e minha saúde. Mas tinha conseguido pagar o aluguel atrasado, adiantar um mês e comprar um pouco de comida, depois de quase morrer à míngua. Talvez eu me alimentasse por mais uma semana com o que ainda restava. Seria um verdadeiro milagre se sobrevivêssemos a um mês, e eu já não poderia me dar ao luxo de permitir omissões. Nem minhas, nem de qualquer responsável por eu me encontrar naquela situação.

Assim que coloquei os pés em casa, saquei o celular na bolsa e disquei para ele, não adiaria o inevitável. Aguardei alguns minutos, ele demorava a atender, e a cada instante minha garganta se contraía mais. Cheguei a pensar que não me atenderia; eu estava a ponto de me render às lágrimas, quando ouvi:

— Depois de tanto tempo, não esperava uma ligação sua — a voz era baixa, confidencial, como se ele não quisesse ser ouvido por quem quer que estivesse perto.

— O desespero nos faz agir — respondi.

— O que quer a essa altura, Kayla? Não está satisfeita com todo o transtorno que me causou? — indagou ele.

— Eu tentei. Tentei enfrentar as consequências do nosso erro sozinha — ressaltei a dupla responsabilidade, minha voz turva.

— E o que quer que eu faça? Que mande a minha mulher embora para você entrar?

— Mas eu pensei que, você disse que...

— Nada disso é da sua conta — sua voz se escureceu —, não vou ficar discutindo minha vida pessoal com você. Vou perguntar pela última vez: o que espera de mim?

Jardim de Inverno (DEGUSTAÇÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora