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"Como o que sabemos do futuro é feito apenas de elementos abstratos e lógicos — inferências, palpites, deduções —, ele não pode ser degustado, sentido, visto, ouvido ou desfrutado de alguma forma. Persegui-lo é como perseguir um fantasma, um que constantemente nos escapa, e, quanto mais corremos para alcançá-lo, mais rapidamente ele foge." Alan Watts

Daniel

Na manhã seguinte eu me levantei cedo. Para falar a verdade, não tinha dormido muito bem, tinha estranhado o sofá-cama. Desci, preparei o café, tomei uma xícara e deixei umas torradas para Aline, que ainda não havia dado as caras. Então, um pouco ansioso, tratei de procurar algo para fazer.

Desci para o quintal e segui a trilha de pedras brutas que entremeava a ladeira gramada. Ao avistar o pomar, parei, pousei as mãos nos quadris e observei o estado da grama alta que circundava o terreno. Precisava ser cortada. Era estranho pensar em questões corriqueiras quando tantos assuntos sérios pendiam, sobre minha cabeça, como uma espada prestes a cair. Mas a vida tinha que seguir seu curso, a casa precisava de cuidados, e Marrom, também.

De olhos fechados, inalei o ar frio e úmido da manhã; orvalho, relva, lavanda e madeira úmida. Talvez, ao abri-los, eu me sentisse mais leve, refleti, mas, quando elevei as pálpebras, os pensamentos conturbados ainda eram os protagonistas em minha mente. Tanto que meu olhar se tornou fixo, daquele modo irresistível e inevitável, e minha visão, turva. Quase esqueci o que tinha ido fazer ali, enquanto a paisagem se transformava no amontoado de borrões, em cores decompostas, de uma tela impressionista.

Pisquei várias vezes e, aos poucos, os feixes luminosos e etéreos que delineavam as sombras matizadas daquele quadro fictício voltavam a ser cálidos raios do Sol verdadeiro. O astro-rei já se elevava bem acima do horizonte; logo Aline estaria de pé.

Emiti um suspiro resignado e perseverei em meu propósito. Varri a grama e recolhi as folhas secas, mas ainda eram oito da manhã quando terminei.

Tinha pensado em subir logo em seguida para ver Aline, mas era cedo. Eu teria tempo para dar uma olhada no pomar, havia dias não passava por lá.

Desci o gramado, Marrom me seguindo entusiasmado, e me surpreendi logo que atravessei o cercado, com a visão da amoreira tingida de borrões vermelhos, boninas e quase negros. Eu deveria saber. Na última vez que havia estado ali, ela já estava carregada, embora as frutas ainda estivessem verdes.

Eu me aproximei, colhi apenas um punhado e comi, saboreando o contraste doce-azedo, observando a área distraidamente.

Voltei a apreciar a amoreira e decidi colher mais alguns bagos. Olhei para a bacia que ficava sempre por ali e fiz nota mental para não me esquecer. Faria um suco para o café da manhã; Aline adorava, e eu ainda não havia me alimentado.

Por volta das nove, terminei de varrer a grama do pomar e subi. Entrei pelos fundos, pela cozinha, e dei de cara com Aline. Ela tomava um copo d'água perto da geladeira, de costas para a porta, e ainda não tinha me visto.

— Bom dia — cumprimentei com as mãos nos quadris, e a vi voltar-se sobre os pés descalços.

— Ah, oi, bom dia! — cumprimentou, ligeiramente surpreendida, pelo que pude notar.

Parecia cheia de energia, como fazia muito tempo eu não via, e eu estreitei os olhos, intrigado, ao mesmo tempo que impressionado. Assenti com a cabeça e desci o olhar, observando-a de cima a baixo; o volume dos seios sob a camisa cavada, a curva da cintura, o quadril redondinho... Foi involuntário, juro.

Ela estava mais desarrumada do que costumava estar pelas manhãs nos últimos anos. Os cabelos soltos, desalinhados, e ainda de pijama. Era interessante vê-la assim, tão lindamente à vontade. Da maneira como tinha se comportado nos três anos anteriores, eu não estranharia se ela aparecesse diante de mim usando uma burca. Sim, era interessante... Ou qualquer outro adjetivo ainda mais perturbador, no qual eu não me atreveria a pensar.

Jardim de Inverno (DEGUSTAÇÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora