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"Leais são as feridas feitas pelo que ama, porém os beijos de quem odeia são enganosos" Provérbios 17:17

Aline

Se ele sabia que eu o preferia com a barba, por que diabos a tinha retirado?, pensava eu dois dias depois, absorta, como que tentando resolver um enigma. Estava pronta, de banho tomado e (não sabia por que cargas d'água) ansiosa por receber a visita do tal marido.

Ri de mim mesma. Talvez o humor ajudasse a amainar aquela sensação de abandono. Eu não sabia por que infernos me sentia assim, não conhecia aquele homem e, portanto, se me sentia de alguma forma defraudada, não era por culpa dele. Não podia ser.

Mas que espécie de marido era aquele sujeito que deixava a esposa sozinha em um hospital, que não demonstrava qualquer afeto, que se mantinha tão distante?, perguntava-me.

Aquele homem não me amava, eu tinha certeza.

Não que eu me importasse.

Mas, deixando de lado a esquisitice do que eu estava vivendo, o que me levava a pensar sobre tudo isso era o fato de estar sozinha naquela situação. Minha irmã ainda não havia aparecido, meus amigos também não e, quando eu perguntava por eles, os funcionários do hospital se esquivavam dizendo sempre que meu marido poderia responder a essas perguntas. Isso me confundia ainda mais.

Por que, Deus do Céu, todos agiam assim?

Nos dias anteriores, eu havia esperado por toda a manhã, e Daniel também não tinha aparecido. Nem mesmo dera alguma satisfação.

Olha só, ri desdenhando de mim mesma. Isso era patético, eu estava mesmo ficando louca; num dia não reconhecia o sujeito, no outro já queria satisfações. Deus me ajudasse, eu estava a ponto de surtar.

Mas, na realidade, ele era tudo o que eu tinha no momento, a âncora e única possibilidade de conseguir me manter estável naquela realidade que parecia inventada e à qual eu sabia que precisava me adaptar; eu era um grão de poeira que, no espaço, precisava de uma trilha de luz pela qual se guiar. Inevitavelmente temia que ele, assim como todos a quem eu considerava próximos, se afastasse e sumisse, já que parecia mais distante do que um marido deveria ser, ou que eu achava que deveria; maldição, meus pensamentos estavam uma verdadeira bagunça, eu não sabia o que pensar.

Fechei os olhos e inspirei enquanto me recordava do perfume dele. Dois dias atrás, ao se retirar do quarto, Daniel tinha deixado um rastro de seu aroma amadeirado; eu definitivamente gostava daquele cheiro. Por que gostava do perfume de alguém que claramente não gostava tanto assim de mim, bem, isso eu não saberia responder. Aliás, não sabia de quase nada, e mais um detalhe para minha vasta lista vazia não faria diferença.

— Olá — uma voz suave me arrancou dos pensamentos. Quem seria agora? Eu já havia recebido enfermeiras, fisioterapeuta, neurologista, psiquiatra, o diabo a quatro, o que mais poderiam querer comigo? Já estava farta de tantos exames e perguntas. — Posso entrar?

— Pode, claro — respondi à mulher morena e de rara beleza que cruzava a soleira com vários ramos de flores apoiados a um braço.

— Oi, meu nome é Tessa. Como está? — indagou, a voz serena.

— Bem melhor, obrigada.

— Que bom.

Eu a observei. Usava jeans, camiseta branca com singelos bordados na gola e sapatilhas. Nada de jaleco. Ufa! Seria mais algum parente apagado da minha memória? Não, pelo amor de Deus!

A garota pareceu perceber meu escrutínio e disse:

— Ah, não sou médica. Costumo passar por aqui de vez em quando e bater um papinho com os pacientes... É um trabalho voluntário.

Jardim de Inverno (DEGUSTAÇÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora