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"Nostalgia lembra-te de um passado que não volta. Faz-te lembrar, porém, que nem tudo que passou é esquecido." Alef Birchler

Aline

De manhã bem cedo, ao acordar, senti um perfume familiar. Olhei em volta, mas só encontrei vestígios da estada dele ali: a cama desarrumada ao lado, uma bolsa e uma frasqueira sobre a poltrona.

Preocupada, prensei os lábios. Por que eu tinha a sensação de que Daniel preferia me encontrar dormindo? E por que isso me angustiava tanto?, cheguei a me fazer essa pergunta, mas a confusão em minha mente, por si só, era resposta.

À tarde, o motivo da minha angústia já não era uma impressão, eu tinha certeza de que meu marido não fazia questão de me encontrar acordada.

Meu marido... Isso, sim, era estranho.

Apesar dos pesares, eu albergava esperanças de que Daniel me visitaria, afinal o fato de que ele havia passado a noite ali devia significar alguma coisa; no mínimo que ele se importava comigo, que não era tão indiferente a minha situação como parecia.

Para meu espanto, bastou o pensamento e, antes que o verde-claro da decoração do quarto me entediasse de novo, ele se materializou a minha frente.

...

Daniel

— Desculpe, não quis assustar você — pedi.

— Tudo bem, não assustou, eu só estava distraída. — Ela sorriu mais abertamente do que eu esperava, e eu mais uma vez fiquei impactado com sua espontaneidade.

— Como está se sentindo hoje? — perguntei procurando disfarçar a forte comoção.

— Bem. Mas continuo perdida... Não quer me ajudar com isso?

Inferno, mais perguntas?, pensei. Mas eu não deveria ter me espantado. Nem com a pergunta, nem com o jeito doce com que ela havia pedido. Era de se esperar que Aline me colocasse contra a parede de novo, mas a verdade é que seu pedido provocava uma enormidade de sentimentos antagônicos dentro de mim.

E se ela me fizesse aquela pergunta outra vez?

Eu quis desaparecer, mas, por outro lado, estava paralisado, seduzido pela leveza de seu semblante. Fazia anos eu não via seu rosto tão expressivo, o olhar meigo e tingido de uma súplica doce. Isso era tão... dela. Da mulher com quem eu havia me casado, não da outra de quem eu queria me separar: tudo que eu via agora era daquela por quem um dia eu tinha me apaixonado e que havia ficado no passado. Esta última havia morrido anos atrás, sepultada viva, e, quando aquela que estava deitada na cama recobrasse as memórias perdidas, saberia disso também. Confuso, mas verdade.

— E então, vai me ajudar? — insistiu rompendo meus pensamentos.

— Claro, por que não? — respondi, apesar de meus sentimentos e das sensações bizarras que a visão dela me provocava. — Como posso ajudar?

— Queria fazer mais perguntas, pode ser?

Não pode.

— Pode. — Suspirei exalando minha resignação, mas mantive o semblante impassível. Sentei-me sem saber como me esquivar e não parecer um idiota covarde. — Dormi aqui esta noite — comentei de modo casual. — Cheguei bem tarde e não quis acordar você, mas estive aqui. — Fiz questão de ressaltar.

Não sabia se fazia isso para deixá-la tranquila ou se para aliviar minha consciência, mas precisava da sensação de que não fazia a coisa certa só para manter o remorso a um braço de distância. De que fazia a coisa certa porque era um homem que fazia a coisa certa. Sempre. E porque era o mínimo que Aline merecia. Mas, logo, somente por pensar assim, eu estava de novo nessa linha finita mas inacabável, e circular, e de pontas unidas, que nos deixa nova e indefinidamente no campo do interesse próprio; o que me deixava mal comigo mesmo. Mas pelo menos isso, a neura da culpa, devia ser um sinal de que eu não era um sujeito tão mau assim, certo?

Jardim de Inverno (DEGUSTAÇÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora