CAPÍTULO 16 - NO ALBERGUE II

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— Keiton... por que é que você sumiu? A gente era quase irmão e você foi embora do nada.

— Eu não quis te abandonar. Meu problema nunca foi você. Mas você entende, já que veio pra cá.

Ela franziu o cenho.

— Como assim?

— Recomeçar — disse ele, olhando para baixo. — Sem ela.

— Minha mãe?

Foi a vez de Keiton fazer uma careta. Ele não sabia! Droga... Keiton achava que Kristina tinha ido ao Fígado só para sair da vida de Laisa. Agora, ele encarava a garota com olhos desconfiados.

— Não foi por isso? — perguntou ele.

Kristina soltou duas ou três sílabas aleatórias, incapaz de articular uma frase. Então desistiu de falar e bebeu mais água, observando as sobrancelhas de Keiton se contraírem até aparecer uma ruga entre elas.

— Vai dizer que... Quem te trouxe pro Fígado? Tem alguém com você aqui?

— Quem te trouxe pra cá? — retrucou a garota. — Como é que você me achou, e quem é que te falou que eu tinha sumido?

— A tia Laisa. Me mandou atrás de um endereço que tava no seu armário, mas parar no mesmo albergue que você foi uma coincidência. A probabilidade até era grande, já que esse é o único lugar em quilômetros. Mas não deixa de ser coincidência.

Como ela pôde esquecer o papel no armário? Idiota!

— Então agora você faz favores pra ela? Depois de cinco anos ignorando a mulher que te criou como mãe, que te ama mais do que ama a própria filha...

— Você não sabe — interrompeu ele. — Não sabe como era viver com ela depois do atentado. Por anos ela ficou doente, Kristina. Eu era uma criança e ela jogava um peso gigante em cima de mim.

— Foda-se, ela te ama. Você devia dar mais valor pra isso.

— Como se fosse fácil! Eu sei que também tinha amor, e agradeço, mas toda vez que eu penso nela eu lembro daquela tortura psicológica.

— Tortura? — Kristina mordeu o lábio com força. Lembrou-se da caixa sem luz nem som onde Elinor tinha passado o que certamente foram as piores horas de sua vida. Pensou em Ronan, encarcerado por culpa de um grupo de monstros e morto nas mãos outro grupo de monstros.

— Não faz sentido a gente discutir isso agora. Eu já te disse por que tô aqui, agora é sua vez.

Ela olhou para as próprias mãos, respirou fundo, balançou a cabeça devagar de um lado para o outro com os olhos fechados como se negar o presente pudesse, de alguma forma, ajudar a destruí-lo. Mas não podia. Kristina estava encurralada. Sussurrou, ainda sem levantar a face para o primo:

— Só me leva pra casa. Por favor, Keiton, me leva pra casa.

Ele também respirou fundo, pesado, barulhento, antes de dizer:

— Responde minha pergunta. Por que você tá indo pra Melkan? Quem tá com você?

— Você não precisa fazer isso. Você não veio pra cá a serviço.

— Olha minha roupa. Kristina, levanta a cabeça e olha pra minha roupa. — Ela obedeceu. — Eu tô de uniforme. Eu sou um soldado de Kailan, sempre a serviço da nação.

Subitamente, Keiton se levantou e saiu em direção às escadas. A garota observou o movimento do primo e então olhou em volta, desorientada, como se tudo tivesse sido uma ilusão. Com pressa, tirou algumas notas do bolso e pagou ao barman, depois correu de volta para seu quarto. Elinor estava no aposento, revirando a mochila sobre um dos pufes. Kristina parou à porta. Ótimo! Mais um conflito para encarar.

— A Adriana tá com os meninos no outro quarto — disse Elinor. — Mas ela deve vir daqui a pouco, porque já são quase uma e meia e a gente pega a estrada bem cedo amanhã. — Kristina continuou parada. — Tá tudo bem?

— Parece bem?

Com um suspiro, Elinor se despiu de seu teatrinho.

— Tá legal, o Marko me contou por que você tá chateada. Mas a gente pode conversar.

— Chateada?! — Ela entrou no quarto e bateu a porta. — Chega a ser ridículo você falar assim comigo numa hora dessas.

— Você entendeu. Eu sei que a gente te deve desculpas e esclarecimentos, e a primeira coisa que eu tenho que te dizer é que não é fácil pra mim tomar as decisões que eu preciso tomar pro nosso plano dar certo.

— Eu não tenho tempo pra isso agora. Sério. A gente não pode mesmo sair durante o toque de recolher?

— Não dá.

— Ótimo. Perfeito.

Kristina bufou, levando as mãos à cabeça, contendo uma vontade imensurável de gritar. Elinor a olhava como alguém olha uma escultura feia de um escultor renomado.

De repente, as luzes se apagaram.

Elinor começou a ofegar instantaneamente. Inspira---expira, inspira--expira, inspira-expira. Parecia uma máquina em aceleração. O ruído era perturbador. Se ela continuasse assim, iria desmaiar.

— Calma! — disse Kristina, esticando o braço na direção de Elinor. Só depois se deu conta de seu gesto. Mas disse: — Segue minha voz. Eu tô aqui.

As unhas de Elinor foram as primeiras a alcançarem a garota, arranhando sua pele. Mas por que Kristina estava ajudando a assassina? Ao mesmo tempo, como não ajudar alguém tão indefeso?

— Continua falando, Kristina. — A voz estava frouxa, mas o aperto no braço da protetora estava firme. — Por favor.

— Tá. Tudo bem. Tá tudo certo.

Com certeza nada estava certo. Kristina suava frio. Tentou andar para perto das mochilas a fim de pegar uma arma, porém Elinor se manteve pregada ao chão e a ela, travando a garota.

— Eu tenho que ir até lá!

— Não!

Passos se aproximaram pelo corredor.

— Então vem junto. — Kristina abraçou Elinor e a puxou. Conseguiram alcançar os pufes.

Nesse momento, no quarto ao lado, um som de maçaneta rodando, um estrondo e barulhos de tiro. Kristina tateou as mochilas à procura de um zíper, mas aquelas porcarias eram pequenas demais e seria bem mais fácil se Elinor desimpedisse sua outra mão.

Então alguém entrou no quarto delas: uma silhueta grande e forte, usando um capacete. Kristina enfim abriu a mochila, pegou a arma, apontou para a silhueta, mas o soldado foi mais rápido e deu três tiros de pistola. De olhos espremidos, a garota continuou em pé com o braço esticado e o dedo sobre o gatilho, esperando a hora de cair sobre o próprio sangue e morrer. No entanto, só o que aconteceu foi que o aperto em seu braço se desfez e um corpo que não era o dela desabou no chão. Kristina voltou a abrir os olhos, mas nem as silhuetas das coisas existiam mais. Ela piscou várias vezes, procurando desembaçar a visão, mas não deu certo. Tremia, talvez pelo frio repentino que parecia ter se instalado no quarto. Sua boca estava seca e seu coração a espancava e onde estava aquela grande quantidade de ar que deveria existir no mundo? Parecia que de repente se tinha rarefeito, e a quantidade de oxigênio em um sorvo se reduzira à insuficiência. Ela olhou para o corpo aos seus pés. Inspirou profundamente para conseguir falar em um guincho irregular:

— Olha o que você fez, Keiton, ela não ia fazer nada.

Mas Keiton não emitiu nenhuma palavra. Ondeexatamente ele estava? Uma dor aguda surgiu na têmpora de Kristina. Ela perdeuos sentidos.

AO NOSSO HERÓI, UM TIRO NO PEITOWhere stories live. Discover now