Capítulo 3 - A cor da vitória

3 0 0
                                    

De volta à Sede da Vanguarda, um galpão abandonado no limite do Bairro Comercial da Estrela, dentro da Floresta-vazia, os Vangues, como eram chamados, comemoravam a vitória. No palco, a banda tocava músicas autorais, um ritmo psicodélico/dançante, um riff de contra-baixo bem marcante e bastante sintetizadores.

Foto-varais se emaranhavam como teias de aranha nas janelas do balcão. Havia grafite por todas as paredes e quadros de pintura a óleo espalhados pelo local. No andar de cima vários materiais para confeccionar os adereços que os integrantes usavam nas operações. A resistência artística era forte.

Bruna jogava seu cabelo enrolado e volumoso no ritmo da música. A cor vermelha-escura de seus cachos e sua pele de tonalidade negra-dourada se uniam com a pirotecnia do palco ao fundo, era como um vulcão em erupção. Seus lábios carnudos e batom vermelho eram exatamente como a lava que escorre pelas montanhas deve ser. Ela queimava aos olhos de quem estivesse por perto.  

De longe, Nina observava, abobalhada, como alguém que procura uma distância segura para sentir o calor de uma fogueira sem se queimar. Havia um raro brilho em seus olhos negros, quase como uma estrela solitária em uma noite de verão. Nina era como uma boneca, seu cabelo preto-quase-azulado e extremamente liso completava sua aparência minimalista, sem grandes realces. Bem dizer, essa simplicidade acabava por ser seu diferencial, coisa que ela não via. Em eventos festivos como esse preferia ficar isolada e ver Bruna dançar de longe. Isso a fazia refletir sobre sua introversão e como gostaria de ser diferente. Nina sempre admirou tudo em Bruna e projetava na amiga os próprios desejos.

As duas trocaram olhares, Nina sorriu sem graça e Bruna foi em sua direção. “Ei, vamos dançar! Hoje foi histórico!” - Disse Bruna. “Você sabe que eu não danço, não sei por que insiste.” - Respondeu a segunda. “Você também dizia não vandalizar prédios públicos há algum tempo atrás”. As duas sorriram uma para a outra e quando iam dizer mais alguma coisa a música parou e um jovem subiu ao palco.

Branco de cabelos dourados, com olhos azuis piscina, Jota era quase reluzente. Podia parecer mais padronizado que os outros, mas ainda assim havia sido escolhido como líder não tinha muito tempo. Inspirava segurança, parecia sempre saber o que estava fazendo. Se Bruna era fogo, Jota era gelo. E como é sabido, os opostos se atraem, pelo menos da parte de Bruna. Ele tinha o porte esportista médio, nem muito magro nem muito musculoso. Era confiante o bastante para ser respeitado sem parecer arrogante. Ele supria as necessidades do grupo e era admirado. Pegou o microfone e começou a falar.

Esse grupo existe há muitos anos antes de nós, porém se resumia em algumas reuniões de arte. Quando assumimos esse projeto, Bruna e eu, só queríamos garantir um espaço para nos expressar.  Porém, na medida que vocês foram chegando isso aqui foi crescendo, expandindo e se tornou o que é hoje, a Vanguarda Jovem Colorista! Somos um grupo de sonhadores e nosso sonho é mudar essa cidade! - Gritos e palmas ecoaram no local. - Essa foi nossa primeira operação desse porte. Foi nosso manifesto contra essa lei absurda que acabou de vez com a liberdade artística nessa cidade. Nós não temos mais nem as ruas para nos expressar. Mas isso não vai ficar assim! Vamos planejar mais intervenções, vamos recrutar mais pessoas e vamos revolucionar essa cidade! - Mais palmas. Bruna nem piscava. Jota ainda falou mais algum tempo sobre como a arte é transformadora e fez um discurso de não-violência. - Eles nos chamam de vândalos, mas vandalismo é o que eles fazem com essa cidade. Matando nossa cultura, apagando nossa identidade. Nós temos que mostrar para todos o que nós já sabemos, que a arte é o caminho - Então terminou o discurso sob aplausos e gritos, a música voltava a tocar.


Algumas pessoas foram até Bruna, parabenizando-a, mas ela parecia nem se importar tanto, sempre procurando por Jota. Nina foi se afastando aos poucos e deu de encontro com o líder.

Nossa! Como você chegou aqui tão rápido? - Disse Nina, meio assustada.

Eu vim correndo pra ver você, é claro! - respondeu Jota no tom debochado de sempre.

É que eu tenho que ir pra casa, você sabe que eu não posso chegar tarde.

Eu sei, eu sei. Seu pai é rígido, parece até que ele é policial. - Ironizou.

Muito engraçado... Você não deveria ficar fazendo piada com isso.

Tá bom, foi mal. Mas tenho que dizer, você mandou muito bem na “OP”, me surpreendeu.

Valeu, mas eu só acompanhei a Bruna como sempre.

Você fala isso como se fosse pouca coisa, a Bruna é selvagem!

Nisso a gente concorda. - Disse rindo.

Além do mais, desta vez acho que foi o contrário, você está diferente. - Um breve silêncio se instalou, Jota manteve o contato visual e Nina desviou o rosto.

É sério, eu sei que alguma coisa aconteceu, fica mais um pouco, vamos conversar.

Você conhece a minha família desde pequeno, sabe como as coisas são. Mas tudo bem, amanhã eu te conto na escola.

Combinado.

Agora para de encher e me deixa ir embora seu chato - E virou-se para ir.


Logo após a saída de Nina, Bruna chegou e começou a falar, com um brilho no olhar.

Hoje foi incrível, seus planos sempre dão certo.

Você sabe muito bem que nada disso teria dado certo sem você, você é o que sustenta esse grupo. - Falou enquanto passava a mão no cabelo de Bruna, com o mesmo cuidado que se deve ter quando manuseia nitroglicerina. A jovem era conhecida por explodir quando homens tentavam tocá-la. Não era o caso com o rapaz de agora, já que ele sabia baixar a guarda dela.

Eu ainda vou descobrir o que você quer de mim, Jota - Sorriu de canto de boa enquanto fixava o olhar na lagoa calma e serena que eram os olhos de Jota.

Você, ein!? Por que não pode me dar um crédito? - disse rindo.

Para com isso, gato. Eu não tenho culpa de que a maioria das vezes você tá bolando algo. - E deu um empurrãozinho no braço dele.

Sei… Você deveria acreditar mais em mim.

Eu acredito, você sabe disso.


Os dois riram e conversaram por mais um tempo, até que Jota disse que ia voltar ao trabalho e Bruna segurou sua mão. “Agora sou eu que to pedindo pra você ficar mais um pouco”, mas Jota deu um sorriso e saiu. Enquanto Jota ia em direção ao palco, Bruna ficava com os olhos fixos nele. Seu momento pensativo só foi interrompido por uma pessoa, Guto.

O paredão negro-ébano de olhos verdes apareceu pelas costas da moça, pegou no ombro e falou com uma voz profunda e marcante, digna de narrador de rádio, “Você deveria dizer o que sente antes que seja tarde, Bruna”. A moça se espantou e virou-se com um semblante de raiva. “Agora você resolveu escutar a conversa dos outros, é isso!?”, reclamou para Guto, que vestia uma calça apertada, uma camiseta roxa e um lença amarrado no braço. “Meu amor, você sabe que eu to falando sério. Se demorar muito, vai perder ele para bonequinha de porcelana”, Se referia a Nina, agora em tom agudo de chacota, parecia até outra pessoa. “Já falei que eles são só amigos de infância, por isso a intimidade. Os dois não tem nada demais”, Bruna disse com firmeza. Guto pôs uma mão na cintura e outra no ombro de Bruna. “Pequena, eles não tem nada ainda”, então deu uma gargalhada digna de DragQueen. “Me deixa em paz Guto!”.

Chora-rios: Os Vangues (em andamento)Where stories live. Discover now