A história de uma sombra II

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II

Reconhecia que por ser afortunada, Katarine fazia algumas coisas que o assombravam, como na vez em que riu abertamente depois de dizê-la que estava sem comer há dois dias. Ele, entretanto, sempre ignorava esses acontecimentos cada vez que ela olhava para ele com aqueles brilhantes olhos de um azul profundo, Katarine era uma das duas pessoas no mundo que o tratavam como o ser humano que sentia que fosse, era o que acreditava.

- Bastardo inútil, vá pegar mais lenha antes que eu o surre por não ter morrido antes que aprendesse a falar! - Grande Sêlkior.

Ronn abaixou a cabeça e saiu calado, medo disparava por suas veias ao menor sinal de seu pai, mas logo após, era substituído pelo ódio, que fervia dentro dele cada vez que o grande Sêlkior o olhava como se olhasse a um inseto ou falava com ele com o mesmo tom com que tratava os bodes que defecavam onde não deveriam, não que não estivesse acostumado, afinal era assim desde... Bom... Desde sempre.

Saiu da taberna pelo estábulo e recolheu a lenha o mais rápido que conseguiu. Havia aprendido logo cedo que tapas na cabeça doíam e sempre os levava se não entrasse, fizesse o que deveria fazer e saísse o mais rápido possível da vista dos outros. Também descobriu cedo como roubar comida do mercado e da dispensa da taberna sem que dessem falta da quantidade e a pegar objetos dos mercadores e de algumas pessoas desagradáveis sem que sequer percebessem.

Quando dera por si, havia se tornado um ladrão. Não se orgulhava disso, mas se não o tivesse feito, teria morrido ainda garoto, mas também quase havia morrido ainda garoto, várias vezes, sempre que o descobriam, oh e acredite, o haviam descoberto várias vezes nos primeiros anos.

Os anos passaram e Ronn recebeu cada vez menos punições por furtos, até deixar de recebê-las por completo, como recompensa, ganhou cicatrizes pelo corpo e o título de Bastardo-Eider7.

Entrou novamente pela porta dos fundos, passando pelo estábulo e cozinha, uma vez que não era autorizado a usar a entrada convencional, atravessou o salão do bar, levou a lenha até a lareira do lado oposto das mesas e aguçou a audição, esperando ouvir estórias novas.

- Maldito seja, estou lhe dizendo a verdade! - Um homem com uma barba, cabelo desgrenhado e cor de palha levantou-se com o rosto vermelho. - Chamam-no de ræv fe8, dizem que é intrépido como o próprio Loki9. Hail10 Loki! - Continuou o homem.

Ronn passou a realizar sua tarefa de juntar as cinzas mais demoradamente, a fim de ouvir o homem melhor.

- Dizem que caso se estabeleça em alguma terra, as criaturas começam a fugir e a terra a ficar infértil - O homem parecia temeroso.

Deveria ser um pastor de cabras que estava na cidade para vender peles, deduziu Ronn, após olhar sobre o ombro para ter uma visão melhor do sujeito, esses pastores costumavam ser supersticiosos demais e sempre se tremiam de medo quando ouviam alguma estória idiota sobre Cernunnos11.

- Nenhum Ræv fe seria tão poderoso, homem, esqueça essa estória estúpida! - O outro, mais baixo e com ausência de cabelo, exclamou. Porém, parecia igualmente temeroso, pensou Ronn.

O homem pareceu se acalmar e pensar no que o outro havia dito.

- Você está certo, um maldito feiticeiro não seria tão poderoso. - O homem passou a mão grande pela barba e sentou-se, nenhum dos dois falou novamente.

- Skiderik! - Ronn mordeu uma maldição ao ouvir a voz da mulher do grande Sêlkior, a mulher gorducha era a coisa mais desagradável que havia visto na vida, por causa dela fora punido diversas vezes quando mal falava. Que culpa tinha ele, se o marido dela gostava de esquentar outros leitos?

Ronn nunca teve contato ou empatia por sua mãe, ela o entregou ao grande Sêlkior tão logo havia desmamado e partiu da cidade, pelo que sabe. Nunca soube dizer por que ela simplesmente não o havia abandonado na floresta quando nasceu, como frequentemente faziam as mulheres que geravam bastardos, nunca soube por que o próprio Sêlkior também não o fizera, embora suspeitasse que ele o mantivera para se tornar justamente o que era, um escravo.

- Dame12 - Respondeu sem erguer a cabeça, jamais poderia olha-la como igual, havia aprendido cedo.

- Termine logo isso e suma da vista dos clientes, inútil.

Com frequência, Ronn comparava a voz da mulher com o grasnar do pato que dera origem ao seu título de bastardo, também com frequência, ele chegava a conclusão de que o grasnar era menos irritante.

- Ya Dame - Respondeu em tom baixo.

Há meses sentia-se mais incômodo que o normal com ela, uma vez a flagrara olhando-o de uma forma que lhe deu arrepios e ânsia de vomitar suas entranhas, enquanto carregava o estábulo com feno novo.

Acabou seu serviço e se retirou, cobriu-se com uma manta negra, velha e empoeirada e saiu trilhando as vielas imundas da cidade, ele normalmente não era chamado para trabalhar a noite.

Obviamente, o horário que mais fazia frio, ele não era permitido de estar na taberna, porque também era o horário de maior movimento. Então usava esse tempo livre para visitar Katarine primeiro, ela se retirava para o quarto por volta desse horário, para coser qualquer coisa que fosse para seu casamento inexistente.

Desde que completara quinze anos, Katarine possuía pretendentes, mas seu pai não os julgou bons o suficiente para ela, o que era um alívio para Ronn, visto que não sabia o que faria caso lhe fosse arranjado um noivo.

Certa vez conversaram sobre isso, ele disse que se fosse rico, com certeza a cortejaria, ela abafou o riso com as costas da mão e disse apenas que ele seria um excelente cavalariço para quando ela se casasse, depois citou todos os pontos positivos de deixar de viver no estábulo, ele apenas sorriu diante de sua doçura ao propor pagar a um bastardo por um trabalho digno.

Entendia seu lugar há muito, o que não necessariamente o obrigava a gostar de viver como vivia. Não, ele o repudiava a cada respiração, por mais que aparentasse estar habituado com sua vida, tinha que sê-lo, reconhecia que como um bastardo, tinha tido sorte apenas em ter um teto onde dormir, debaixo da "proteção" do grande Sêlkior.

Também não era autorizado a chama-lo de pai, nunca.


Glossário:

7. Bastardo-eider: Referência ao pato-eider que voa em alta velocidade durante a debandada para o sul;

8. Ræv fe: Tradução livre para "fada raposa"; criaturas místicas que uma vez foram humanas e morreram por uma grande injustiça, despertando o Deus da justiça Forseti, que ao tocar seu espírito com o machado dourado, as dotou com as habilidades de serem imortais, caminharem no mundo material e espiritual, aliviando a dor de espíritos injustiçados presos ao plano material, conhecer todas as lembranças com um toque e alterar a forma animal livremente;

9. Loki: Deus do fogo, da trapaça e da travessura da mitologia nórdica;

10. Hail: Saudação usualmente usada após proferir o nome de um deus ou divindade, como demonstração de respeito;

11. Cernunno: Criaturas comedoras de carne que possuem chifres e pele de cobra;

12. Dame: Título dado à senhora da casa;

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