A história de uma sombra I

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I

"O mal existe, mas nunca sem o bem, tal como a sombra existe, mas jamais sem luz."

Alfred de Musset

– Se você realmente acha que pode me vencer, este será seu último erro, idiota! – Ronn2 fintou para a esquerda, girou e acertou seu alvo (um saco de feno) com um golpe direto.

Ele sabia que um adversário real não permaneceria parado enquanto ele atacava, então buscava decorar os movimentos de defesa e ataque dos espadachins negros há anos, recriando os treinos que via das sombras.

– O que você pensa que está fazendo, Skiderik3?

Uma voz gutural rompeu o som da respiração pesada de Ronn, assustando-o e fazendo-o girar sem antes abaixar o pedaço de pau que usava como espada, acertando de forma certeira a barriga do grande Sêlkior4, que por sua vez, rugiu de dor, um som estranho entre o engasgo e grito, pensaria Ronn se não estivesse assustado demais no momento.

– Maldito seja, Der fødte5!

Ronn apenas se afastou do homem com a cabeça baixa. Estava ferrado, agora que o deixariam montanha acima no inverno!

De fato, era uma ameaça, a maioria dos animais iam mais a leste no inverno, se fosse exilado para a montanha, morreria de fome ou frio, esse era o destino de um bastardo cujo pai havia negado cuidado, achava que seria difícil morrer de fome, uma vez que sabia se virar sozinho há anos, mas a ideia de ser exilado não lhe agradava, não pela família ou qualquer um da cidade, mas sim por sua irmãzinha (apesar de que jamais poderia chama-la de irmã perante outros) e por Katarine, filha do mais rico mercador da cidade.

Há dois anos havia conhecido Katarine quando invadira seu quarto pela janela, para fugir de um bando de idiotas que o viram vendendo a mercadoria que roubara deles. Absurdo! Ronn roubava para sobreviver, ninguém lhe fornecia comida, o grande Sêlkior dizia que ele poderia comer os restos dos cavalos, se quisesse. De forma que o dinheiro que adquiria na venda das coisas que roubava, lhe permitia comer o suficiente para não enlouquecer pela fome.

Katarine o havia fascinado, parecia uma Valkyrie6 perdida com seus cabelos longos e loiros como ouro derretido, olhos de um azul profundo e pele pálida como a neve que acumulara em sua janela. Katarine o olhara assustada e teria gritado se ele não tivesse lhe tampado a boca e explicado, sussurrando em seu ouvido, que não estava ali para fazer mal algum. Então pedira a ela permissão para permanecer mais algum tempo, até poder sair de novo. Talvez o medo a levara a acenar com a cabeça.

Cuidadosamente, ele a deixou livre e para seu assombro, eles conversaram até que ele precisasse fugir para não ser encontrado no quarto dela por sua mãe. Depois daquele dia ele voltava com certa frequência. Ela lhe ensinara coisas que não poderia aprender espiando os outros e ele, em troca, contara a ela todas as estórias dos bardos que passavam pela taberna, local onde uma donzela jamais poderia pisar.

Fazê-la rir era uma das poucas coisas que parecia certa para ele, então elaborava cada vez mais suas estórias, passando a inventar ele próprio algumas ao perceber quais mais a agradavam.

Assim havia aperfeiçoado suas mentiras. Descobriu que era bom em mentir e o fazia sempre que fosse preciso, para além disso, aprendeu a reconhecer primorosamente uma mentira, ajudando-o a lucrar mais em suas vendas, ao passo que grande parte do que roubava lhe era unicamente exótico e por um certo tempo, seu. Afinal, um bastardo não deveria possuir nada.

Dessa forma, também com frequência roubava livros, os roubava, os lia e os vendia, uma vez que jamais se esqueceria do que havia aprendido.

Havia aprendido a ler sozinho, a primeira palavra que aprendeu havia sido "inútil", quando mal tinha seis anos, o filho mais velho de um mercador estava bêbado e mostrando a seus amigos como uma tintura do país do sul funcionava, na falta de papel, puxou seu cabelo e escreveu as palavras em seu braço, quando ele passou para atiçar a lareira.

O filho do mercador e seus amigos riram e o largaram novamente aos seus afazeres, a tinta ficara em sua pele por semanas, Ronn considerara os valiosos traços como o primeiro presente que alguém lhe havia entregue, aprendeu a desenha-los na areia, não demorou muito também, aprendera a desenhar centenas mais.

Glóssário: 

2.Ronn: sufixo usado para aqueles que não possuem sobrenome, por serem considerados bastardos;

3.Skiderik: Tradução livre para "bastardo";

4.Sêlkior: Título dado a aquele que é o melhor no que faz em sua função, ex.: taberneiro, comerciante, etc.;

5.Der fødte: Tradução livre para "quem o pariu";

6.Valkyrie: Deidades femininas que servem Odin sob as ordens de Freia. Elegem os mais heroicos guerreiros mortos em batalha para conduzi-los ao salão dos mortos, Valhalla;

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