23 anos de saudade e dor

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Lia foi ao supermercado naquele fim de tarde de quinta-feira comprar alguns produtos que faltavam. Por isso pegou só uma cestinha. Precisava de pão, queijo, um pouco de carne, sabão em pó e shampoo. Provavelmente levaria mais. Era sempre assim. Planejava levar cinco coisinhas, mas sempre saía com pelo menos dez.

Ela tinha quase 50 anos e carregava no rosto muitas marcas da vida. Parecia ser mais velha. E havia motivo pra isso. Lia já havia sofrido muito. Teve um câncer tempos atrás, e no ano anterior seu marido morreu. Mas nada disso a destruiu tanto por dentro quanto a perda do seu filho, há 23 anos.

Não se apresse leitor, ele não havia morrido. O filho de Lia havia sido roubado. Dentro de um hospital público, em plena luz do dia. De forma inexplicável. Lia nunca se perdoara por isso. Mas ela era só uma jovem, em uma cidade grande, para onde havia se mudado a pouco tempo, e abandonada pelo homem que amara. Ela não havia nem conseguido comunicar a ele que estava grávida, porque o maldito simplesmente sumiu do mapa, sem nenhuma explicação.

Na lembrança, apenas alguns segundos em que conseguiu ver o filho, que logo foi levado pelos enfermeiros. Lia teve graves complicações no parto, precisava de cuidados urgentes. Quando enfim acordou, horas depois, a tragédia já havia acontecido. Ninguém sabia explicar onde estava a criança.

O caso teve repercussão na época. Lia foi aos jornais, procurou a defensoria pública, fez tudo o que pôde. Passou sei lá quantas noites sem dormir. Mas a criança nunca fora encontrada. E todos, é claro, esqueceram a história. Menos Lia, que ainda carregava um fio de esperança de encontrar o filho.

Até que o inacreditável aconteceu. Lia estava entrando na fila do supermercado quando viu um jovem que aparentava uns 20 anos. Era um menino bonito, levemente ruivo, que a fazia lembrar um grande amor (e uma grande dor do passado). Ele estava colocando as compras na esteira e quando foi pagar olhou de relance para trás, na direção de Lia, o que foi o suficiente para que ela tivesse certeza. Aquele menino era o seu filho. Era ele. Lia quase morreu por dentro naquele instante.

O jovem pagou e saiu do supermercado. Num ímpeto, quase tendo um ataque cardíaco, Lia largou a cestinha e saiu correndo atrás dele. Ela não sabia o que fazer, mas foi seguindo o menino sabe-se lá pra onde, com o coração na boca e as mãos tremendo.

Um quarteirão depois ele parou em um sinal. Sem pensar, tomada pela emoção, Lia avançou para cima do rapaz e colocou a mão em seu ombro. Ele, surpreso, disse.

- A senhora está precisando de alguma ajuda?

Lia ficou perdida, sem saber o que fazer, lágrimas saltando do rosto. Não conseguia mais se controlar. Ele era tão lindo e tão perfeito. Olhos pequenos como do pai que tanto amou. Nunca amara um homem tanto quanto aquele cretino. E ali, bem na sua frente, o fruto daquele amor, desaparecido a 23 anos.

- A senhora está se sentindo bem? - repetiu o rapaz, já assustado com aquela senhora desconhecida segurando seu ombro com uma força que não parecia pertencer a uma mulher já com certa idade.

Lia sentiu medo. Ele com certeza a acharia louca. Era um menino que parecia estar tão bem, com tanta saúde. Será que era justo entrar na vida dele assim de supetão?

Ficou sem saber o que dizer.

- É que você me lembra muito meu filho que perdi. - ela respondeu com a garganta quase trancada.

- Lamento muito. Quando isso aconteceu? - ele disse.

- Já faz muito tempo... - Lia estava em uma espécie de estado de choque.

O rapaz começou a sentir pena da velha desconhecida e resolveu puxar assunto.

- Como era o nome dele?

- Breno, era Breno - Lia respondeu com uma grande dor no peito, já que há anos não falava aquele nome - E o seu, qual é?

- Vinícius - ele responde.

As lágrimas rolam mais e mais. Por essa ela não esperava mesmo. Vinícius era o nome do pai de seu filho. Aquele homem que tanta felicidade e tanta tristeza lhe trouxera. Que ironia do destino. Que crueldade.

Eles se olham. E um silêncio sepulcral toma conta daquele momento.

O sinal abre e o barulho da rua interrompe a cena. O rapaz não sabe o que fazer. Só pede licença e vai embora. Lia fica sem reação e vê desaparecer assim, do nada, mais um amor de sua vida.

(Pelo menos o filho pediu licença. Porque o pai nem isso. Foi embora sem nem dizer adeus).

À beira da vidaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora