Desvio o olhar quando ele me encara, porque sei que pode ver por debaixo da pele e ler cada pensamento, e sei disso porque sempre confiei nele, pra tudo, tudo mesmo. Até quando, pouco depois de completar dez anos e fiquei menstruada. Minha mãe ou minha avó já tinham me dito uma coisa ou outra, mas nada muito detalhado, talvez não achassem que viria tão cedo. A dor da cólica, eu jurei que era dor de barriga e que morreria no banheiro com as tripas descendo pelo vaso. Mas, quando vi o sangue, tive certeza que estava morrendo. Depois de horas e de perceber que não estava morrendo, adivinha para quem foi que eu pedi ajuda?

É assim, ele arranca todas as cascas dos meus machucados, limpa, cuida e passa o remédio que arde. Ah e como arde!

— Para alguém que viveu em Porto Novo você tem uns pensamentos bem retrógrados, Marine. – Não disse que ele sabe de tudo que passa na minha cabeça?

— O quê? – Desaforado!

— Marine, para ser bem sincero, acho que todos nós aqui precisamos de terapia, mas, se quer saber, eu concordo com sua mãe.

— E por que concorda com ela? Também me acha louca? – Paro meu cavalo, obrigando-o a fazer o mesmo.

Meu rosto começa a se banhar pelas lágrimas e meu coração se aperta, sei o que vai vir daqueles lábios escondidos pela barba. Por Deus, como ele pode ter só dezoito anos?

— Não, Marine, eu acho que você precisa de ajuda, por causa de tudo que passou.

— Tudo que eu passei? Desde quando algo tem a ver com o que eu passei e não com o que fiz todos passarem?

— Não consegue ver? Você estava com problemas quando Nina nasceu, fugiu deles e depois só se meteu em encrenca.

— Eu não me meti em encrenca! Eu construí uma carreira, o meu nome está lá fora, a droga do meu trabalho, Ethan! É isso que pensa de mim? Como aqueles comentários que insinuaram que eu mereci tudo ou que eu só podia estar procurando por problemas?

Acho que ainda não contei a vocês, mas, além de conseguir ler pensamentos, Ethan é também um revirador. Literalmente, revira-a-dor. Ele pega aquela farpa que te incomoda há dias, e faz um rombo no seu dedo só para arrancar ela de lá, prometendo que a partir de agora vai melhorar, o lance do remédio ardido, que já expliquei. Eu sempre preferi deixar que meu corpo expulsasse as farpas sozinho, ainda que demore.

— Você não tem culpa, Marine, eu juro que não acho isso. Eu demorei a entender, mas eu entendo agora, e não quero que...

— Não quer o que, Ethan? Termine!

— Não quero que se afunde de novo.

— Pois saiba que eu só me afundei porque eu merecia estar lá, Ethan, eu merecia cada segundo em que ele me xingava, desfazia de mim ou me humilhava. Porque é isso que pessoas que abandonam os filhos e a família merecem, é o que eu mereço!

Autocombustão realmente não deve ser possível, já que meu corpo inteiro está em brasa, mas não sai uma faísca sequer. Grito para meu cavalo seguir, ele se inclina e começa a trotar para longe dali. De Ethan e de Nina, que chama Marine-Claire várias vezes com seu tom suave de melodia de ninar.

— Pare de fugir, Marine! – As palavras que Ethan grita dispersam como poeira jogada ao vento.

Não me viro para olhar em sua direção, só quero seguir adiante e nunca mais parar. O único problema é que meu cavalo não concorda comigo, em pouco tempo ele diminui a velocidade e, por mais que eu xingue, mande beijos ou o mande prosseguir, passamos a seguir na lentidão de uma tartaruga se arrastando na terra.

Marine Woods: Na Trilha Sonora do Coração [LONGLIST WATTPAD 2018]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora