CAPÍTULO 14 - O TERCEIRO-SARGENTO

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— Pode até ser. Mas a senhora já ligou pros amigos dela, pra ver se eles sabem de alguma coisa?

— Eu não falei com ninguém. Não posso, Keiton. Ela disse que ia fazer uma besteira enorme. Eu acho que é alguma coisa ilegal. Eu não posso deixar ninguém saber, e muito menos isso pode vazar pro exército. Eu preciso ter ela de volta antes que dê alguma coisa errada. É por isso que eu te chamei aqui.

— Você quer que eu vá atrás dela? — Foi mais um pedido de confirmação do que uma pergunta.

— Por favor, Keiton, traz ela pra casa. Não deixa nada de ruim acontecer com ela. Eu sei que isso vai contra os seus deveres, mas eu tô te implorando. Eu não tenho mais em quem confiar, e eu não posso perder minha filha.

Ele baixou a cabeça, pensativo. Por uma infinidade de razões, aquele não era um pedido simples, e tia Laisa sabia disso. Mas, realmente, ela não havia mudado. Keiton ingênuo! Não podia se submeter a ela de novo. Não era mais uma criança confusa. Por outro lado, tratava-se também de Kristina em perigo. Mesmo tendo se afastado da prima por tabela (e ainda não sabendo como se reaproximar) ainda a considerava sua irmã caçula. E ela sempre fora um pouco irracional, mas agora, ao que parecia, essa característica a enfiara em um problema sério.

— Eu não sei, tia...

— Você não quer fazer o bem, manter a paz? — O choro dela recomeçava. — Não foi pra isso que você quis ser militar? E pela tua mãe. O que ela faria no teu lugar, agora?

Sempre o mesmo pretexto.

— Eu não sou minha mãe.

Tia Laisa abriu a boca para contra argumentar, porém a fechou novamente, com um aspecto frustrado. O silêncio sucedeu, transpassado por uivos e latidos dos cães da vizinhança.

Uma das únicas recordações que Keiton tinha da mãe, e a mais íntima, era o diário dela. Teresa Lan Fer havia o mantido durante seus últimos três anos de vida. Na morte, o caderno passara a Keiton, e além dele ninguém havia lido, nem mesmo o pai. Gregor não quis tirar do filho a exclusividade daquela conexão. Keiton tinha quatro anos quando a mãe se foi, e as memórias de menino eram frágeis; a única ligação particular sólida entre filho e mãe era o diário. Keiton o havia lido pela primeira vez aos nove anos, e desde então revisitava as páginas encardidas sempre que seu coração exigia.

A primeira página começava com um poema sobre Keiton, em homenagem ao seu primeiro aniversário.

Em sua boca pequena

Um sorriso de céu

Na cabeça um chapéu

De festa

(...)

A pergunta impertinente de tia Laisa penetrou suas reflexões. O que a mãe faria em seu lugar?

No meio do segundo ano de diário, ela escrevera: A gente vive com a cabeça ocupada por um aglomerado de fins inúteis: ter dinheiro, ter poder, ter sucesso. E tudo que a gente faz é em torno disso. Eu me pergunto o que aconteceria se a gente vivesse esquecendo disso, fazendo pequenas coisas que tivessem um fim em si mesmas...

Será que sua mãe fazia essas coisas? Era inconsequente assim? Era forte assim? No lugar de Keiton, levaria Kristina para casa? Ou seria orgulhosa demais, como Keiton começava a pensar que era seu próprio caso? Não, não era orgulho. Era autovalorização e a recusa de sofrer de novo.

Finalmente é o dia do show, escrevera Teresa nas últimas páginas do caderno. Vamos só eu e os meninos. Laisa não gosta de música alternativa, então se ofereceu para ficar em casa com o Keiton. Ela é um amor. Preciso pensar em uma forma de agradecê-la depois.

Keiton olhou para a tia. Ela o encarava chorosa, encolhida no sofá. A boca se movia em por-favores que não emitiam som maior que um sopro.

Essa noite vai ser ótima, dizia a última linha do diário. Quando eu voltar, conto os detalhes. Mas os terroristas explodiram uma bomba no meio da plateia naquele show. Teresa e o marido de Laisa morreram. O pai de Keiton, que tinha se distanciado para comprar água, sobreviveu com ferimentos leves.

— Você sabe — disse Keiton — que o dever primordial do exército é garantir a segurança e a ordem do país. Da nossa pátria. Pra proteger os cidadãos de bem. Não tem nada a ver com questões familiares.

— Eu sei, mas é só dessa vez.

— Calma. Se a Kristina for realmente fazer alguma coisa que vá contra a lei, ela pode ser um perigo pro nosso país. E, se ela não fizer nada nesse sentido, vai ser uma cidadã de bem em perigo.

— Então você vai trazer ela de volta?

— Vou. — Ele guardou o envelope no bolso da bermuda. — Eu vou me programar pra sair amanhã. Eu vou trazer a Kristina.

Não o faria por sua mãe nem pela tia, mas por Kristina e por si próprio. Levaria a prima de volta à segurança. Só uma alternativa específica o obrigaria a suceder de forma diferente, mas não era possível que fosse o caso. Mesmo que, nas palavras de tia Laisa, Kristina tivesse falado "bobagens" sobre o governo quatro anos atrás, ela nunca passaria daquilo.

Kristina nunca se rebelaria contra ogoverno.

AO NOSSO HERÓI, UM TIRO NO PEITOWhere stories live. Discover now