CAPÍTULO 14 - O TERCEIRO-SARGENTO

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Keiton contraiu os lábios. Como entendia o lado de Kristina! Até porque a ajudara a pensar daquela forma. Nunca expusera, de fato, tudo o que ele mesmo pensava (nunca ninguém conhecera 100% dos sentimentos de Keiton), mas não evitava tomar partido ao decidir o que algumas pessoas deveriam saber sobre as outras. Mesmo vendo a tia nas condições em que se encontrava, não se arrependia de ter tido aquela conversa com a prima, quando ela tinha doze anos e ele dezessete. Os dois estavam na adega do pai de Keiton, aonde tinham se acostumado a ir escondidos. Kristina acabara de brigar com tia Laisa, o que era tão costumeiro quanto.

— É claro que ela não me ama — Kristina havia dito. Então, ele confessara:

— Você foi um acidente. Eu ouvi a tia Laisa conversando com meu pai há muito tempo. Ela disse que você foi um acidente.

Na realidade, ele próprio fora o interlocutor da tia na conversa mencionada. Ela estava grávida. Keiton tinha cinco anos. Tia Laisa fazia dele seu confidente. Contava até casos que uma criança não deveria ouvir, e nunca lhe perguntava se ele queria saber daquelas coisas. Ele nunca pudera escolher brincar no quintal. Nunca soubera ter essa opção. Para ele, o normal era ficar sentado por horas ouvindo uma mulher depressiva chorar mágoas e mágoas e mágoas.

Kristina ficara inquieta com a notícia de ser um bebê indesejado.

— Então é por isso.

— A princípio sim — ele havia dito. — Mas depois ela aprendeu a gostar de você. Dá pra perceber.

O processo gradativo de aceitar e amar Kristina culminara em um processo gradativo de poupar Keiton. Isso era nítido para ele. Porém, não foi suficiente para fazê-lo ficar.

— Não, ela não gosta de mim — dissera a prima. — Posso tomar mais conhaque?

Keiton nunca imaginaria que aquele sentimento, alimentado pelo ciúme do bebê Eiden, pudesse evoluir a ponto de Kristina tomar a mesma decisão que ele. Mas ela poderia ao menos, como ele, ter se dado ao trabalho de ser discreta. Assim, ao partir, magoaria o mínimo possível alguém com quem, de uma forma ou de outra, tinha laços.

— Ela falou sobre uma coisa — continuou tia Laisa —, de quando ela tinha quatorze anos. Você não sabe disso. Eu bati nela. Ela deu pra falar um monte de bobagens sobre o governo, que o livro do Marechal só tinha mentira. Tudo o que eu queria era proteger ela, mas ela nunca me ouviu, nunca me entendeu. É tão perigoso falar as coisas que ela falou e ter o tipo de pensamento que ela tava tendo... Mas ela acha que tudo o que eu faço é por mal. Eu queria que ela visse como ela tava errada e parasse de falar aquelas idiotices. Ela parou. Mas ela não consegue ver como isso é um bem que eu fiz pra ela. Ela só vê a parte que eu machuquei ela. É claro que eu não queria machucar, mas machuquei, e ela usou isso contra mim quando fugiu.

— Eu sinto muito. A senhora não tem nenhuma ideia de aonde ela pode ter ido?

— Tenho. Desde quando ela foi embora, hoje de manhã, eu não falei com ninguém nem saí de casa. Na verdade, eu não sabia o que fazer. Eu falei pro Eiden que ela foi pra casa da Tiara, a amiga dela. Depois de um tempo, eu fui pro quarto dela e comecei a revirar as coisas. Eu achei isso no armário.

Ela tirou de um dos bolsos da camisola um envelope dobrado. Keiton o abriu. Tudo o que estava escrito era: Rua General Erson, 302, Centro, Melkan, Fígado.

— Um endereço — disse ele. — Essa letra é dela?

— Não sei. Mas eu acho que é pra esse lugar que ela foi. Não tem nenhum outro motivo de ter um papel com um endereço no armário dela.

AO NOSSO HERÓI, UM TIRO NO PEITOWhere stories live. Discover now