Capítulo 3 (12 anos atrás)

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Havia quatro dias que não comia nada. Começou economizar energias no dia anterior, mexia o mínimo possível, achava que a dor dos chutes, socos ou palavras eram ruins até que conheceu a fome. Mas o pior de tudo foi não saber como Emilie estava. Trancada na suíte da casa onde todas as janelas possuíam grades e a do cômodo em questão não havia vista para casa dos vizinhos, era impossível fugir ou pedir ajuda.

Estava se arrependendo profundamente de pensar em fugir, faria qualquer coisa para não prejudicar sua filha, apanharia o resto da vida do marido se isso fosse necessário desde que ele não fizesse mal a Emilie. Sua principal preocupação era se Lawrence descontou sua ira na pequena e delicada garotinha ou se ele saiu e a deixou desamparada sem que ninguém cuidasse dela. Se Emilie estivesse sozinha, com certeza teria percorrido a casa em busca da mãe, ambas eram inseparáveis desde o dia que Eliza segurou o pequeno corpo mole pela primeira vez, agora ela estava crescendo tão rápido, foram 4 anos de puro orgulho vendo uma nova vida se desenvolver.

Ironicamente, para sua sorte, havia um banheiro conectado no quarto, o espelho mostrava os hematomas da briga que antecedeu seu cárcere, tons de púrpura cobriam a têmpora esquerda, que latejava, e o alto da maçã do rosto. Perdera os óculos que ganhou do pai no final da adolescênciapara comemorar o ingresso dela na faculdade de psicologia ,quando ganhou o soco que pintou a pele do rosto, agora não importava mais, só queria que sua filha estivesse bem. A dor dos chutes nas costelas se transformou em um pequeno incomodo quando o estômago começou a protestar. As palavras dele ainda ecoavam "vou lhe mostrar o que aconteceria a você se não fosse por mim, sequer teria Emilie" então Lawrence a privou da comida e de qualquer contato humano por quatro dias e ainda não a soltou, pior, privou de quem precisava de seu cuidado. Talvez ele estivesse certo, depois de refletir por tanto tempo, não teria dinheiro para sustentar as duas, era melhor a dor física o resto da vida do que ver sua filha sofrer. Talvez ele a tivesse levado para casa de sua mãe como sempre fazia depois de uma briga como aquela, fugia para trás de alguém que sempre justificava sua personalidade destrutiva.

Diversos passos ecoaram pela casa, Eliza pensou que sua mente estava lhe pregando peças, não ouviu nenhum barulho desde que o marido a trancou no recinto. O barulho foi se intensificando cada vez mais, Aiken fechou os olhos com força em forma de protesto contra a imaginação, apertou as pernas contra o peito apesar de o tórax protestar. Batidas rápidas soaram pela porta.

- Lawrence, me deixe sair, por favor. – implorou.

- Policia, para trás, vamos derrubar a porta. – diz uma voz desconhecida, Eliza ficou imóvel, poderia ser sua mente ainda.

Após algumas investidas a porta é arrombada, um paramédico e dois policiais entram pela porta, não consegue sentir alivio suas emoções não estão processando. Emilie. Era tudo o que importava.

- Onde está minha filha? – pergunta enquanto o profissional da saúde ajuda a se levantar.

- Ainda não encontramos nenhuma criança, estamos vasculhando a casa. – responde o policial mais alto. Eles a cobrem com um cobertor e a conduzem para a sonhada saída daquele cômodo. A casa está cheia de policias, entrando e revidando os mínimos detalhes de cada local.

- Quem chamou vocês aqui? Foi o meu marido? –questiona.

- Uma senhora fez a denuncia de cárcere privado, mas não encontramos mais ninguém na casa. – responde homem alto, olhando agora, parece mais um detetive do que um agente de rua. Eliza desce a escada com dificuldade, mas ela prontamente a ajuda deixando que ela apóie seu peso nele. Com certeza foi a mãe de Lawrence que denunciou, era covarde o suficiente para não contrariar o seu filhinho de ouro e ainda mais covarde por não deixar alguém morrer, apesar de tudo não mataria por ele.

- Mcbell, você precisa ver isso agora. – grita uma voz vinda da sala.

Eliza segue o policial, se algo aconteceu em sua casa queria saber. O que viu em seguida assombrou todos os seus sonhos. Uma garotinha de cabelos loiros estava estirada no chão, o corpo sem vida parecia ter caído do armário recém aberto. Hematomas esverdeados em forma de dedos envolviam os dois bracinhos, ela não entrou naquele lugar por vontade própria. O corpo estava pálido e magro, a pele parecia ter esticado acima dos ossos de forma que parecia que a carne e a gordura estivessem evaporado. Eliza estava bebendo água da pia do banheiro apesar da fome, tinha espaço e não apenas um quadrado escuro. Faria qualquer coisa para trocar de lugar com a filha. Uma mulher coloca luvas e levanta gentilmente as mãozinhas de Emilie. Quase todas as unhas haviam sido arrancadas, sangue coagulado estava ao redor.

- Ela lutou para sair, morreu sofrendo. – diz Eliza se entregando as lágrimas, seus joelhos cederam. Todos no recito ficaram em silêncio, eram ouvidos apenas os baixos soluços de Eliza. O detetive gentil parecia querer desmoronar ali mesmo, o horror é visível em seu rosto, após uma longa expiração ele consegue falar.

- Foi o seu marido que trancou você? – pergunta ele com a voz rouca. Ele queria saber o culpado, quem seria capaz de espancar uma mãe na frente da filha, separá-las e pior, matar de um jeito cruelmente doloroso um inocente. Nesse momento, Eliza percebeu que Mcbell levou para o lado pessoal, isso fez com que sentisse uma pequena conexão com ele.

- Sim. – Eliza mal conseguia falar, todo seu arrependimento evaporou e foi substituído por uma raiva crescente, nunca mais poderia olhar no rosto dele, aquele monstro. Nenhuma agressão foi justa, ele não tinha o direito, aguentava tudo por conta do medo irracional de ficar sozinha e pela sua garotinha. O modo como ele a manipulou, fez acreditar que não era digna, todo seu conhecimento e vontade de viver havia ido para o ralo e no final de tudo, ele fez seu mundo desmoronar, arrancou até a última coisa que lhe dava alegria.

Após algumas horas no hospital para se recompor e tratar da subnutrição, a moça é solicitada na delegacia para prestar depoimento. Era indescritivelmente horrível repassar todos os anos de sofrimento e pior ainda, narrar com cada detalhe vivido a última briga do casal que resultou no confinamento. Eliza nunca mais queria falar sobre o homem que arruinou sua vida, quando se conheceram foi como entrar num conto de fadas, Lawrence a tratava como um frágil floco de neve, qualquer ferida poderia estragá-la. Até que o cuidado que a fazia sentir-se especial tornou-se sufocante até que o seu príncipe se transformou no vilão mais horrendo. Ela só queria esquecer.

- Precisamos de qualquer pista da localização dele. Uma coisa que possa parecer bobagem talvez não seja, todas as informações são úteis. - disse firmemente o policial que tomava notas do que ela narrava.

Lawrence sempre se escondia atrás da sua mãe já idosa quando recuperava a consciência e via o quanto sua ira havia feito de destruição. Imaginava que provavelmente ela poderia ter alguma informação de onde ele estivesse. Porém só de visualizar o rosto daquele assassino novamente a fazia querer morrer, se conseguissem achá-lo enfrentaria diversas vezes, o advogado falaria coisas horríveis, isso era algo que ela não conseguiria fazer.

- Não imagino onde ele esteja, pode estar se escondendo em qualquer motel barato. – diz ela com a voz arrastada de cansaço.

Talvez depois que ele soubesse o que tinha feito, mudaria seu jeito explosivo. Talvez ele estivesse arrependido e buscasse redenção, mas Eliza não iria permitir que fosse ao seu lado. Ele não cometeria o mesmo erro duas vezes, não é mesmo?

Não olhe para trásWhere stories live. Discover now