O prelúdio da penumbra I

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Suspirou, de repente exausto e acomodou-se melhor na parede de pedras frias, retirou dois pedaços de pão dos bolsos e pôs o item recém adquirido entre seu braço e o tronco, era maior do que esperava que fosse, mas então, lembrou-se de quando roubou um melão e o escondeu entre as pernas.

Deu de ombros, não foi confortável, mas absolutamente delicioso, era uma fruta exótica e estranha, que viera com um mercador do oriente, o dividira com sua irmã e claro, com Katarine.

Lembrar-se dela fez seu sangue esquentar um pouco, seu peito doía? Sim, mas ele seria maldito se voltasse a procura-la, não importando quantas vezes quisesse, não o cederia.

Parou com o pão a centímetros de sua boca, ele provavelmente se sentiria mal depois, mas o que seria sentir-se mal depois de sentir-se miserável? Deu de ombros novamente, enquanto observava minuciosamente as formações dos espadachins que ele decorara há muito.

Poderia não ter entrado numa briga nunca, caso se defendesse de quem quer que fosse, poderia ser punido, mas a cada golpe que recebia, flexionava os músculos, já consciente de como bloqueá-lo, a cada abertura que seu agressor dava, determinava pelo menos duas formas de atacar de forma eficiente.

Sua mente era rápida, aprender a mentir fizera aquilo com ele e pensar nessas coisas o distraia da dor, sabia que os outros riam quando ele gritava de dor e sempre que podia, lhes roubava essa oportunidade de divertirem-se.

Um bastardo não possuía planos, não lhes era cabível possuir sonhos ou desejos, era certo que deveria ser grato apenas em seu pai decidir poupar sua vida. Ronn nunca se sentiu dessa forma, desde a primeira vez que viu um espadachim negro desembainhar sua espada, desejou uma, desejou saber lutar, desejou defender-se. Desde a primeira vez que viu Katarine, desejou toca-la, ouvi-la, falar com ela e ser ouvido.

Desde a primeira vez que viu Elsea, desejou poder ter o que ensinar-lhe, desejou que não cheirasse a cavalo quando ela o abraçava. Desde a primeira vez que viu uma caravana de mercadores do oriente, desejou conhecer o mundo além daquela cidade.

Sempre desejava, sempre planejava como obter algo, como não ser punido e acima de tudo, sempre sonhou em ser chamado pelo nome, não a coisa que indicava que ele era apenas mais um bastardo e sim seu verdadeiro nome, a única coisa que sua mãe lhe deixara, além da roupa do corpo, quando o abandonou.

Esgueirou-se para as ruas quando percebeu que os espadachins não tentariam nada novo naquela madrugada.

Entrou na taberna, o som distinto de um alaúde ainda podia ser ouvido, chegara mais cedo que o costume, descavou o buraco onde estava guardando seus itens e o fechou novamente, após colocar a aquisição da noite. Subiu as escadas que davam para o mezanino que ele construíra há alguns anos, sempre dormiu acima dos cavalos.

Não era confortável, mas ainda tinha sorte por não ser inverno, dormir se tornava um verdadeiro inferno congelado, as madeiras não eram grossas o suficiente para manter muito calor dentro, de modo que sempre descia e dormia próximo aos cavalos.

As semanas seguintes se arrastaram, a cidade estava em fervor pela notícia do casamento de Katarine, a mesma desfilava com sua mãe e acompanhantes pelo mercado, em busca de coisas diferentes para sua cerimônia. O casamento seria realizado na cidade, por escolha do noivo, que chegaria com sua caravana em questão de dias.

Por ventura, Sêlkior Rurik era um senhor de mercadores, o que significava que possuía dezenas de mercadores a seu serviço, pagando-o parte das vendas dos produtos que vendiam, que por sua vez, ele mesmo adquiria com outros mercadores de lugares distantes e desconhecidos, o que significava que conforme a chegada de Sêlkior Rurik se aproximava, maior era o movimento de mercadores e mercadorias na cidade, a ponto que metade das estalagens e tabernas haviam sido reservadas para a comissão de Sêlkior Rurik, pelo período que ele estivesse na cidade para seu próprio casamento.

Ouvia as garotas suspirando e invejando a posição de sorte de Katarine, por ter sido escolhida por um homem de posses, os garotos queriam ser o próprio Sêlkior Rurik, ter o poder que ele tinha, de mobilizar a uma cidade inteira e de escolher a mulher que mais lhe agradasse, em várias cidades que poderia escolher.

Entretanto, o aumento do movimento na cidade lhe favoreceu inegavelmente, não só já havia conseguido tudo o que precisava, como também já possuía uma quantidade de dinheiro considerável para fugir da cidade, tão logo seu plano estivesse concluído.

Muito dificilmente alguém agregaria a culpa do ocorrido nele, um medíocre bastardo cuidador de cavalos de uma taberna, principalmente porque ninguém além de sua irmã conhecia a vida dupla que levava.

Mas sempre que revisava mentalmente seu plano, algo não lhe assentava bem no mais profundo de seu ser e Ronn sabia perfeitamente que não era culpa, remorso ou medo de ser pego, era algo quase instintivo que indicava que devesse ter cuidado. Assim, repassava seu plano várias vezes ao dia, todos os dias, coletando conversas e invadindo locais para se assegurar de que tudo ocorreria como queria.

Quando fugisse, não poderia levar Elsea e aquilo era quão único lhe doía, por mais que o grande Sêlkior e sua esposa não valessem o feno não digerido de um cavalo, eles cuidavam bem dela e não seria justo leva-la com ele em circunstâncias adversas.

Ronn já havia planejado cada passo de sua fuga também, com o dinheiro que estava juntando, viajaria até uma cidade desconhecida ao sul, onde ninguém o conhecesse, criaria seu próprio sobrenome e começaria como mercador, havia acompanhado os mercadores por tempo o suficiente para aprender a identificar o que vendia e o que não vendia, como convencer a vender e como comprar mais barato.

Sim, agora Ronn sabia o suficiente para começar. Uma vez saído da cidade, poderia defender-se, poderia agir como se fosse igual aos demais, poderia ser algo diferente do que supostamente nasceu para ser, um miserável.

Caso conseguisse manter-se de forma mais ou menos estável, aí sim voltaria por Elsea, deixaria que ela tivesse idade o suficiente para decidir ir com ele ou permanecer na cidade e caso fosse com ele, ensinar-lhe-ia tudo o que sabia, a levaria para os lugares que conheceu e permitiria a ela casar-se com um bom homem, que a merecesse.

Ronn havia terminado de limpar todo o esterco do estábulo, havia tirado a camisa para evitar suja-la e mesmo com o frio cortante, gotas de suor escorriam pelo torso esguio.

Mal terminou o trabalho, tratou de limpar os cascos dos animais dos viajantes, o garrano19 marrom diante de si havia chegado extremamente desgastado da viagem, seu dono era um negociador, até onde sabia, os animais tendiam a sofrer muito mais em longas viagens durante o inverno e ainda que estivesse no final de outono, o descuido de seu dono era evidente.

Glossário:

16. Brathair: Tradução livre para "irmão":

17. Daidí: Tradução livre para "papai";

18. Freya: Deusa da, fertilidade, amor, beleza... e líder das Valquírias;

19. Garrano: Raça de equídeo que se enquadra num grupo alargado conhecido por cavalo ibérico, devido às características comuns e à sua origem;

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O Despertar da SombraWhere stories live. Discover now