VI - QUARTA PARTE

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VI

Tinha saído o último dos convidados. Seixas voltava de conduzir ao carro D. Margarida Ferreira. Aurélia que o esperava, deu-lhe boa-noite e ia retirar-se. Fernando a atalhou:

- Desejo dar-lhe uma explicação!

- É inútil.

- Não tive intenção de ofendê-la.

- Decerto; um cavalheiro tão delicado não podia injuriar uma senhora.

- Uma cousa desagradável que ouvi e que me afligiu profundamente, tirou-me do meu natural. Não estava calmo; em todo o caso referi-me unicamente à minha posição, sem desígnio de qualquer alusão...

- É a história de ontem, que o senhor me está contando! exclamou Aurélia e apontou para o mostrador da pêndula que marcava duas horas. Tratemos de amanhã. Vamos dormir.

Fazendo ao marido uma risonha mesura, a moça deixou-o na sala e recolheu-se a seus aposentos, onde a esperava a mucama para despi-la.

- Podes ir; não preciso de ti.

Aurélia conservava de sua pobreza o costume de bastar-se para o serviço de sua pessoa; como não gostava de entregar seu corpo a mãos alheias, nem consentia que outros olhos que não os seus lhe devassassem o natural recato, poupava sempre que podia a mucama, a qual já não estranhava esse modo.

Fechada a porta por dentro, a moça em um instante operou a sua metamorfose. O trajo de baile ficou sobre o tapete, defronte do espelho, como as asas da borboleta que finou-se no seio da flor, surgiu dali, daquele desmoronamento de sedas, a casta menina envolta em seu alvo roupão de cambraia.

Sentou-se no sofá onde estivera poucas horas antes com Seixas, e ficou pensativa. Até que levantou-se para ir correr a cortina ao quadro e acender a arandela próxima.

Esteve contemplando o retrato e falou-lhe, como se tivesse diante de si o homem, de que via a imagem.

- Tu me amas!... exclamou cheia de júbilo. Negues embora, eu o conheço; eu o vejo em ti, e sinto-o em mim! Um homem de fina educação, como és, só insulta a mulher quando a ama e com paixão! Tu me insultaste, porque o meu amor era mais forte que tu, porque aniquilava a tua natureza, e fez do cavalheiro que és, um déspota feroz! Não te desculpes, não! Não foste tu, foi o ciúme, que é um sentimento grosseiro e brutal. Eu bem o conheço!... Tu me amas!... Ainda podemos ser felizes! Oh! então havemos de viver a dobro, para descontar esses dias que desvivemos!

A gentil senhora apoiou-se à moldura do quadro, e outra vez ficou pensativa.

- E por que não podemos ser felizes desde este momento? Ele está ali, pensando em mim; talvez me espera! Basta-me abrir aquela porta. Virá suplicar-me seu perdão, eu o receberei em meus braços; e estaremos para sempre unidos!

Um sorriso divino iluminou a formosa mulher. Ela desceu do estrado e atravessou a câmara de dormir, com o passo trêmulo, mas afouto, e as faces a arderem.

Chegou à porta; afastou o reposteiro azul; aplicou o ouvido; sorriu; murmurou baixinho o nome do marido; recordou as notas- apaixonadas com que a Stolz cantava a ária da Favorita: Oh! mio Fernando!

Afinal procurou a chave. Não estava na fechadura. Ela própria a havia tirado, e guardara na gaveta de sua escrivaninha de araribá-rosa. Voltou impaciente para procurá-la. Quando sua mão tocou o aço, a impressão fria do metal produziu-lhe um arrepio. Rejeitou a chave, e fechou a gaveta.

- Não! é cedo! É preciso que ele me ame bastante para vencer-me a mim, e não só para se deixar vencer. Eu posso, não o duvido mais, eu posso, no momento em que me aprouver, trazê-lo aqui, a meus pés, suplicante, ébrio de amor, subjugado ao meu aceno. Eu posso obrigá-lo a sacrificar-me tudo, a sua dignidade, os seus brios, os últimos escrúpulos de sua consciência. Mas no outro dia ambos acordaríamos desse horrível pesadelo, eu para desprezá-lo, ele para odiar-me. Então é que nunca mais nos perdoaríamos, eu a ele; o meu amor profanado, ele a mim, o seu caráter abatido. Então é que principiaria a eterna separação.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Where stories live. Discover now