IV - PRIMEIRA PARTE

814 22 1
                                    

 IV

Quem observasse Aurélia naquele momento, não deixaria de notar a nova fisionomia que tomara o seu belo semblante e que influía em toda a sua pessoa.

Era uma expressão fria, pausada, inflexível, que jaspeava sua beleza, dando-lhe quase a gelidez da estátua. Mas no lampejo de seus grandes olhos pardos brilhavam as irradiações da inteligência. Operava-se nela uma revolução. O princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração, para concentrar-se no cérebro, onde residem as faculdades especulativas do homem. Nessas ocasiões seu espírito adquiria tal lucidez que fazia correr um calafrio pela medula do Lemos, apesar do lombo maciço de que a natureza havia forrado no roliço velhinho o tronco do sistema nervoso.

Era realmente para causar pasmo aos estranhos e susto a um tutor, a perspicácia com que essa moça de dezoito anos aprecia-va as questões mais complicadas; o perfeito conhecimento que mostrava dos negócios, e a facilidade com que fazia, muitas vezes de memória, qualquer operação aritmética por muito difícil e intrincada que fosse.

Não havia porém em Aurélia nem sombra do ridículo pedantismo de certas moças que, tendo colhido em leituras superficiais algumas noções vagas, se metem a tagarelar de tudo.

Bem ao contrário, ela recatava sua experiência, de que só fazia uso, quando o exigiam seus próprios interesses. Fora daí ninguém lhe ouvia falar de negócios e emitir opinião acerca de cousas que não pertencessem à sua especialidade de moça solteira.

O Lemos não estava a gosto; tinha perdido aquela jovialidade saltitante, que lhe dava um gracioso ar de pipoca. Na gravidade desusada dessa conferência, ele, homem experiente e sagaz, entrevia sérias complicações.

Assim era todo ouvidos, atento às palavras da moça.

Tomei a liberdade de incomodá-lo, meu tio, para falar-lhe de objeto muito importante para mim.

Ah! muito importante?... repetiu o velho batendo a cabeça.

De meu casamento! disse Aurélia com a maior frieza e serenidade.

O velhinho saltou na cadeira como um balão elástico. Para disfarçar sua comoção esfregou as mãos rapidamente uma na outra, gesto que indicava nele grande agitação.

Não acha que já estou em idade de pensar nisso? perguntou a moça.

Certamente! Dezoito anos...

Dezenove.

Dezenove? Cuidei que ainda não os tinha feito!... Muitas casam-se desta idade, e até mais moças; porém é quando têm o paizinho ou a mãezinha para escolher um bom noivo e arredar certos espertalhões. Uma menina órfã, inexperiente, eu não lhe aconselharia que se casasse senão depois da maioridade, quando conhecesse bem o mundo.

Já o conheço demais, tornou a moça com o mesmo tom sério.

Então está decidida?

Tão decidida que lhe pedi esta conferência.

Já sei! Deseja que eu aponte alguém... Que eu lhe procure um noivo nas condições precisas...

Hã!... É difícil... um sujeito no caso de pretender uma moça como você, Aurélia? Enfim há de se fazer a diligência!

Não precisa, meu tio. Já o achei!

Como?... Tem alguém de olho?

Perdão, meu tio, não entendo sua linguagem figurada. Digo-lhe que escolhi o homem com quem me hei de casar.

Já compreendo. Mas bem vê!... Como tutor, tenho de dar a minha aprovação.

De certo, meu tutor; mas essa aprovação o senhor não há de ser tão cruel que a negue. Se o fizer, o que eu não espero, o juiz de órfãos a suprirá.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Onde histórias criam vida. Descubra agora