VIII - SEGUNDA PARTE

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VIII

Aceitando a companhia de D. Firmina, não era intenção de Aurélia tornar-se pesada à sua parenta.

Passados os oito dias de nojo, enviou pelo Dr. Torquato Ribeiro um anúncio ao jornal, oferecendo mediante condições razoáveis seus serviços como professora de colégio, ou mestra em casa de família. Estava porém disposta a descer até o mister mais modesto de costureira, ou mesmo de aia de alguma senhora idosa. Decorreu mais de mês, sem que aparecesse cousa séria. Apenas- se apresentaram alguns desses farejadores de aventuras baratas, a cem réis por linha. D. Firmina porém percebeu-lhes a manha, e despediu-os da escada, sem consentir que vissem a moça.

Pensava Aurélia em mandar outro anúncio, quando a procurou um negociante, que andara à cata de sua nova morada. Era o correspondente do falecido Camargo, que vinha comunicar à moça o falecimento do fazendeiro.

- A senhora tem em seu poder um papel, que o meu amigo lhe deu a guardar, recomendando-me que no caso de acontecer-lhe alguma cousa, lhe avisasse para abri-lo. Parece que tinha um pressentimento.

O papel continha o testamento em que Lourenço de Sousa Camargo reconhecia e legitimava como seu filho a Pedro Camargo, que fora casado com D. Emília Lemos, declarando que à sua neta D. Aurélia Camargo, nascida de um legítimo matrimônio, instituía sua única e universal herdeira.

Ao testamento juntara o velho uma relação detalhada de todo o seu possuído, escrita do próprio punho, com várias explicações relativas a alguns pequenos negócios pendentes, e conselhos acerca da futura direção das fazendas.

Calculava-se o cabedal de Camargo em mil contos ou cerca. Apenas divulgou-se a notícia de ter Aurélia herdado tamanha riqueza, acudiram-lhe à casa todos os parentes, e à frente deles o Lemos com seu rancho.

Enquanto a mulher e as filhas sufocavam de interesseiros agrados e bajulações a órfã, a quem tinham faltado quando pobre com a mais trivial caridade, o Lemos, expedito em negócios, arranjava do juiz de órfãos a nomeação de tutor da sobrinha.

De primeiro impulso, Aurélia pensou em revoltar-se contra essa nomeação, mostrando ao juiz a infame carta que lhe escrevera o tio; mas além de repugnar-lhe o escândalo, sorriu-lhe a idéia de ter um tutor a quem dominasse.

Aceitou pois o tio, mas com a condição que já sabemos, de morar em casa sua, e não ter relações com uma família cuja presença lhe recordava a injúria feita à sua mãe. Isso mesmo disse-o à tia e primas, quando estas se esforçavam por cobri-la de carícias.

A riqueza, que lhe sobreveio inesperada, erguendo-a subitamente da indigência ao fastígio, operou em Aurélia rápida transformação; não foi, porém no caráter, nem nos sentimentos que se deu a revolução; estes eram inalteráveis, tinham a fina têmpera de seu coração. A mudança consumou-se apenas na atitude, se assim nos podemos exprimir, dessa alma perante a sociedade.

Com uma existência calma e um amor feliz, Aurélia teria sido meiga esposa e mãe extremosa. Atravessaria o mundo como tantas outras mulheres envolta nesse cândido enlevo das ilusões, que são a alva pura do anjo, peregrino na terra.

Mas a flor de sua juventude, ela a viu desabrochar na atmosfera impura das torpes seduções que a perseguiam. Sem o nativo orgulho que protegia sua castidade, talvez que o torpe hálito do vício lhe maculasse o seio. Mas teve força para cerrar-se, como o cacto à calma abrasadora, e viveu de seus próprios sonhos.

Cotejando o seu formoso ideal com o aspecto sórdido que lhe apresentava a sociedade, era natural entrasse a desprezá-la, e a olhar o mundo como um desses charcos pútridos, mas cobertos por folhagem estrelada de flores brilhantes, que não se podem colher sem atravessar o lodo.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Where stories live. Discover now