IV - QUARTA PARTE

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IV

Aurélia estava ocupada em reunir os diversos casais e enviá-los ao meio da sala; desembargadores de todo o tope e calibre, conselheiros carunchosos, viscondes mofados, marqueses carranças: tudo tratava de executar-se da melhor vontade, que era o meio de tomar mais leve a penitência.

Nisto chegou-se a Lísia Soares ao braço de Fernando. A travessa trazia nos lábios um sorriso maligno; o olhar beliscava como um alfinete.

- Está muito entretida com os outros e não se lembra de si, disse ela.

- Como? perguntou Aurélia voltando-se.

- Não disfarce. A justiça começa por casa; aqui está seu marido. Dê o exemplo.

Aurélia compreendeu a vingança da amiga, despeitada por não valsar com o Alfredo Moreira.

Desde a primeira vez que apareceu na sociedade, depois do luto de sua mãe, Aurélia que apesar da palavra afouta e viva, tinha o casto recato de sua pessoa, resolveu não valsar para não arriscar-se a encontrar um desses pares que põem ao vivo a comparação poética da trepadeira enroscada ao tronco musgoso.

Declarou, portanto, que não sabia valsar, e que nunca poderia aprender porque o giro rápido causava-lhe vertigem. Havia nesta segunda parte um fundo de verdade. Quando valsava no colégio com as amigas, sentia tão vivo prazer nessa dança impetuosa, que deixava-se arrebatar e desprezando o compasso da música volvia uma velocidade prodigiosa até que o atordoamento a obrigava a sentar.

Convencida de que ela não sabia realmente valsar, Lísia lembrou-se de tomar uma desforra obrigando-a a fazer triste figura na sala, ou então a retratar-se de sua esquisitice e acabar com a tal valsa dos casados. O que mais estimulara a moça, fora a suspeita de que Aurélia fizera aquilo por maldade, e só para privá-la de dançar com o Moreira.

Nisto era injusta. A razão que movera Aurélia, não sei; mas que ela nesse momento não se lembrava da existência da Lísia e do Moreira, disso posso dar certeza.

- Não seja má, Lísia! disse Aurélia com um modo queixoso, que não ocultava de todo o fino motejo do olhar.

- Nada, minha cara; você não dispensa ninguém, tenha paciência.

- Eu não sei valsar!

- Aí é que está a graça. Meu pai também não sabia.

- Ela sabe, era meu par no colégio, observou uma senhora.

- Há de dançar.

- Pena de talião, dizia um velho advogado gotoso que voltava da valsa tão estafado como nunca o deixara a mais complicada defesa do júri.

- Caso de justa represália! acudiu um velho diplomata que fizera sua carreira em eterna disponibilidade, sem trocadilhos.

- A coroa cede ante a opinião! orava um ministro para quem coroa e opinião no Brasil eram a chapa e o cunho da mesma moeda em que se recebia o salário.

As senhoras insistiam para se despicarem da entrega que lhes fizera a dona da casa; as moças por pirraça; e os rapazes pelo desejo de quebrar o encanto a Aurélia, e terem-na daí em diante como par certo de valsa.

- Não é preciso essa revolução. Eu me submeto, disse Aurélia, curvando gentilmente a cabeça.

Dirigindo-se ao marido que estava defronte e a quem a Lísia não consentira que se retirasse, tomou-lhe resolutamente o braço e deixou-se conduzir ao meio da sala.

- Por que se constrange? Não quer valsar; eu tomo sobre mim a recusa, segredou Seixas.

- É questão de vaidade. Compreende a força que tem para nós mulheres, este nosso ponto de honra? tornou Aurélia também a meia voz.

Senhora ♥ José de Alencar ♥Onde histórias criam vida. Descubra agora