Doses a mais

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As bochechas de Shawn estão mais rosadas que o de costume. Acredito que ele esteja com vergonha. Também estou, na verdade. Se eu fosse um avestruz, já estaria com a cabeça afundada neste chão, mas não. Encaro-o, à espera de alguma atitude.

— Shawn! — o garoto chato insiste em chamá-lo. — Estão lhe esperando...

O cantor assente. Dou de ombros, a fazer menção de que pode ir.

— A gente se esbarra por aí.

Balanço a cabeça positivamente. Meus olhos lacrimejam, apesar de fingir que a recusa não me incomoda. É provável que ele tenha prometido, dois anos atrás, por acreditar que eu não conseguiria vencer o câncer.

No fundo, não o culpo. Quem, em sã consciência, beijaria uma garota como eu?

Maya puxa nossas mãos que estão laçadas na direção em que Shawn foi. Vejo o garçom desfilar com mais doses de tequila na bandeja e bebo uma às pressas. No espaço interno, vejo o pai do meu ídolo se responsabilizando pelas músicas. Solto uma risada com a possibilidade nula de um dia meu pai fazer o mesmo.

Próximo à porta de vidro, em um canto, Shawn e Matt estão em pé sobre um banco. Ambas as mãos grandes dos garotos abrigam garrafas de cervejas fechadas. A multidão ao redor deles faz a contagem regressiva. Ao chegar ao "um", eles arrancam a tampa no antebraço e bebem, de vez, todo o conteúdo. Meu ídolo, já embriagado, deixa que parte do líquido caiam em sua roupa, mas o desperdício não lhe é suficiente para trazer a vitória.

Quando o coro de comemoração chega aos ouvidos de Shawn, ele afasta a garrafa da boca ainda com um resto de cerveja no fundo; Matt, porém, vibra com o vidro vazio na mão. Nesta noite, não há rixa entre perdas e ganhos. Felizes, eles se abraçam. Solto um sorriso embasbacado.

Em meus tempos de vício em assistir os Vines e vídeos antigos de Shawn, imaginar-me como amiga dele ou convivendo com um de seus amigos sempre foi um desejo imenso. Agora, apesar de não estabelecer nenhum tipo de relação com Matt, presencio a parceria e lealdade do meu ídolo com os amigos. Mendes transmite carinho.

De súbito, o garoto me olha. Um olhar duro, como se eu estivesse em uma espécie de mira. Ele desce de lá e caminha na minha direção. Meu primeiro reflexo é de fugir, no entanto, os pés não arredam o chão. Chocada com a aproximação, petrifico. Shawn toca o ombro de Maya, fazendo-a encará-lo.

— Com licença.

Ela abre espaço para que ele se mova. O movimento me surpreende: uma de suas mãos invade os meus cabelos, a estacionar na minha nuca; o peso de seu gesto me tomba para trás, como se eu deitasse em seus braços. Seus olhos castanhos aparentam pedir permissão. A esta altura, acredito que o ídolo saiba que tem livre acesso para fazer o que quiser, mas, rendida a seus cuidados, assinto.

Shawn fecha os olhos. Trêmula, imito-o. Nossos lábios se tocam. Todas as pessoas ao nosso redor gritam. É como se fôssemos, neste instante, a atração da festa. Entreabro a boca, num suspiro afoito, e ele a preenche com sua língua gelada e amarga. Tenho certeza de que isto se deve à cerveja de minutos atrás. Arrepio com a diferença de nossas temperaturas. Quente no frio. Frio no quente.

Pior que o curioso choque térmico, é o de realidade. Este beijo não é nada parecido com os que sonho há anos. Obviamente, não é ruim, mas é desprovido de fogos de artifícios, frio na barriga e corações acelerados. É só um beijo. Um encontro de lábios como qualquer outro.

Shawn nos interrompe. Arfo, com a distância repentina entre nossas bocas.

— Desculpe por esperar tanto tempo. — ele sorri. Hipnotizada, balanço a cabeça. — Promessa cumprida.

Por Um FioWhere stories live. Discover now