16. Escolha

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A vida sempre parece ser mais difícil do que realmente é. São inúmeras obrigações, uma busca incessante por estabilidade emocional e financeira, dúvidas sobre qual carreira seguir e ainda a eterna procura pelo o amor romântico de toda uma vida. Crescemos cercados de cobranças por todos os lados e somos ensinados a sempre buscar por aquilo que nos falta! Mas quem disse que falta? Se completar parece ser algo tão errado e chega até a ser irônico dizer isso. Mas, criamos nossas próprias teias e diferente das que são feitas e projetada pelas aranhas elas não servem apenas para conseguir o alimento e sim para alimentar o ego de um mundo movido ao material, e eu vivi presa a uma dessas teias por muitos anos e até acreditei que nem mais saberia como é viver longe dela, mas para minha surpresa eu me redescobrir o caminho igual aquela música da Elis Regina que diz:

"Vai o bicho homem fruto da semente. Memória!
Renascer da própria força, própria luz e fé.
Memória!
Entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós. História!
Somos a semente, ato, mente e voz.
Magia!"

A dor de se olhar e não se reconhecer é tão pesada quanto a de um amor que se desfez. Viver um amor de via única é um caminho solitário e destrutivo, um soldado não vence a guerra sozinho e por mais que ele se esforce e dê o seu máximo, ainda surgirão várias outras armadilhas durante o percurso, querer trazer pra si todo o peso de uma guerra é um fardo pesado demais pra carregar sozinho, e foi exatamente o que eu fiz na minha vida durante todos esses anos ao lado de Maicon, talvez por ingenuidade, insegurança ou simplesmente por querer, porque na verdade quando você se dispõe a amar o outro, se colocar na vida dele é algo natural, a convivência, a cumplicidade e a crescente intimidade vão te levar a fazer parte sem que nem ao menos você se dê conta disso, e aí é que mora o perigo.

Chega um certo momento que você percebe que mergulhou tão fundo em outra vida que esqueceu de nadar por sua própria conta e quem nada para salvar o outro, sempre corre o risco de se afogar no lugar. Eu me vi em um mundo onde eu não me reconhecia mais e então lancei minha sorte e me firmei na âncora que Maicon me ofereceu, ela me parecia segura e durante um tempo foi tudo aquilo que eu um dia havia sonhado, meu coração se enchia mais a cada dia e meu mundo era o dele, mas a dor de me olhar e não me reconhecer começou a me destruir.

O medo fortalece, e claro que assim como todas as outras coisas desse mundo você escolhe a melhor maneira de usá-lo, eu achei por bem transformá-lo.

O medo se transformou em coragem, a coragem virou força!

E toda essa força simplesmente está vindo do ato de me reconhecer de volta e isso inclui retornar ao "Vozes" depois de um momento intenso e sem nenhum precedentes com Vitória no meu escritório. Depois de sentir uma mistura louca de sensações no simples ato de colocar e tirar um capacete, ela ouviu algumas explicações sobre as escolhas dos materiais utilizados nas construções, viu alguns dos meus projetos, me desenhou sua casa dos sonhos e assim rápido como se fez, toda tensão que estava no ar se desfez.

- Tá atrasada, corre! - Cheguei pra aula de canto atrasada e ao entrar Gabi logo me indicou a sala.

- Trânsito - Essa é a desculpa mais clichê que existe, mas também a mais real. Já tentou andar tranquilamente pelas rua de São Paulo às 18:00 da tarde e ainda chegar no horário? Praticamente impossível. Preciso rever meus horários com urgências.

- Ei Vi... Me desculpa o atraso é que hoje foi difícil chegar - Vitória estava sentada no banquinho de costas para o seu piano lendo algumas anotações e então me aproximei e deixei um beijo rápido em seu rosto.

- Não tem problema Ninha, tava aqui olhando umas coisas. - Vitória levantou e logo juntou nossos corpos em um abraço silencioso. - E se ficar melhor pra ti, podemos refazer os seus horários.

- Acho que vou precisar fazer isso mesmo. Mas agora que cheguei, vamos começar?

- Agora mesmo!

Diz um antigo ditado que "a música amansa as feras" e tem um efeito poderoso sobre nós, sem falar de uma pesquisa que foi realizada pela Alluri onde diz que a música ativa grandes áreas do nosso cérebro, quando ouvimos uma música, as áreas auditivas, límbicas e motoras são ativadas e isso é independentemente do que ouvimos. Há alguns dias atrás Vitória me mostrou essa pesquisa como se fosse a coisa mais valiosa desse mundo e não parava de repetir que: " O mundo precisa saber da existência dessa pesquisa. Ninha, música não é só musica. Música é vida e vai além."

Ela transforma, reforma, refaz e se faz! A forma como o som chega em cada um é diferente, mas a capacidade do fazer sentir é uma só e foi ansiando por isso que resolvi estar onde estou, mas exclusivamente hoje a sala não está tão em paz quanto costuma ser.

- Vi, como você tá? Seu Francisco ainda pegando no pé?

- Que nada! Seu Francisco só tava bravo porque foi acordado de madrugada por duas bêbadas. - Um leve sorriso se formou ao falar sobre aquela noite, mas não foi o suficiente para que eu acreditasse que estava tudo bem. Ou Vitória não é muita boa em esconder as coisas, ou eu estou prestando muita atenção nela.

- Na real ele é muito amor e tem uma história de vida incrível Ninha. - Não sei ao certo o porquê, mas tem algo à incomodando, sua voz está pesada, o olhar quieto, um sorriso tímido, Vitória não é assim. E ela é sempre tão luz que qualquer coisa que aconteça logo transparece e então assim que a aula acabou eu voltei a perguntar.

- Vitória? - Busquei o seu olhar e ela não desviou.

- Oi!

- Está tudo bem? - Falei tão devagar que qualquer ser pensante poderia fazer uma leitura labial perfeita.

- Tá sim. - Ela sorriu complacente mas, mais uma vez não me convenceu em nada.

- Certeza? Você me parece um pouco preocupada.

- Preocupada não, mas talvez um pouco tensa!

- Aconteceu alguma coisa?

- Nada demais. Vai acontecer o festival nacional de música esse fim de semana, eu e a Gabriela íamos, mas aconteceu um imprevisto e agora ela não vai poder ir. E eu só estou um pouco distante organizando os pensamentos, amanhã preciso ligar e cancelar a reserva no hotel, tentar vender os ingressos pra não... NINHA! - Vitória pronunciou meu nome tão rápido que chegou a me assustar.

- O que foi?

- Tu quer ir comigo?

- Eu? Ir com você pro festival?

- Claro, porque não? Tenho certeza que tu vai gostar muito. Topa?

Karl Marx diferenciava os dois reinos da vida entre: a necessidade e a liberdade. No reino da necessidade, eu não posso deixar de fazer aquilo que eu faço, senão eu sofro. No reino da liberdade, a vida é escolha. Você é sempre colocado nesse meio entre o ir ou o ficar, a dúvida é o que corrompe, estar com Vitória é sempre mágico e isso é inegável. Sua companhia além de ser ótima me traz paz, mas será que devo ir? Será que o caminho certo realmente é aquele que fala o coração?

- Vi eu não sei, se... - Vitória segurou minha mão em um pedido silencioso para que eu não continuasse e ela logo começou a falar.

- Eu também não sei, Ninha. Na verdade quem é que sabe? Não sabemos de nada que vá além desse minuto vivido aqui. O agora é só o que temos, então não se preocupe ou pense demais nos minutos seguintes. Eu vou gostar muito de ter você lá comigo, mas se tu achar que não dá, tudo bem..

Eu não sei explicar e muito menos entender o porquê de toda essa força e certeza que me toma quando estou com ela, é involuntário o querer, o sentir e todas as reações e sensações inexplicáveis presentes nessa mulher! E afinal...são atitudes e consequências. Se digo sim, experimento novos sabores. Se digo não, continuo sentindo o mesmo gosto. Vitória está derrubando as minhas barreiras sem ao menos perceber, é natural, é leve, é ela. E tudo aos poucos vai se moldando e se ajustando no seu devido lugar, estar inteira e entregue a isso é fundamental pra se achar entre o caminho. E como realmente a vida é escolha, acho que acabei de fazer a minha!

- Quando viajamos?





"Na vida é preciso ter raiz, não âncora. A raiz te alimenta, a âncora te imobiliza."

SensaçõesWhere stories live. Discover now