Capítulo 3

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Com um sobressalto, Luna acordou; seus olhos ainda se ajustavam à claridade ao mesmo tempo em que lutava para respirar. Estava ofegante como se tivesse corrido a maratona; simplesmente tinha a sensação de que nem todo o ar do mundo seria suficiente para encher seus pulmões. E então, sentiu a dor excruciante em sua nuca...parecia que alguém havia batido na base da cabeça com um taco de baseball. Levou uma das mãos até lá e esfregou, abaixando a cabeça entre os joelhos e tentando se concentrar em respirar normalmente. O coração também batia descompassado e ela podia jurar que seu peito se mexia a cada batida, como se ele fosse um prisioneiro lutando desesperadamente para sair da caixa torácica.

Luna queria vasculhar em volta para se certificar do local onde estava, mas a dor era tamanha que mal conseguia entreabrir os olhos sem que ela aumentasse e assim, permaneceu naquela posição até perder a noção do tempo.

- É muito bom tê-la conosco mais uma vez! - Ouviu uma voz serena exclamar tão próximo que a fez saltar no lugar e sentir uma nova onda de dor.

Não precisava abrir seus olhos para saber de quem se tratava e, se era mesmo quem Luna pensava, isso era um sinal de que estava no local certo. Aquela realização fez com que, aos poucos, o coração e a respiração fossem se acalmando até que finalmente pôde levantar a cabeça e espiar por um dos olhos.

O quarto era imaculadamente branco, guarnecido apenas com duas camas: uma ocupada por ela própria e a outra, na parede oposta, onde uma jovem repousava calmamente. Entre as duas, uma mesa de cabeceira com um pequeno vaso e um ramalhete de flores de lavanda. O violeta delicado da flor era o único detalhe de cor naquele ambiente. Irmão Anselmo havia se sentado às suas costas e a observava atentamente, com aquela calma e doçura que lhe era peculiar.

- Desta vez foi mais longo, não? Uns cem anos humanos, talvez? - observou ele, mantendo as mãos no colo.

Irmão Anselmo era alto e esguio com cabelos e olhos castanhos que derramavam compreensão e amor para quem quer que olhasse. Vestia seu traje costumeiro, aliás, muito peculiar ali, entre os espíritos evoluídos como ele: uma túnica até o joelho, fechada por botões até a gola redonda e uma calça reta, ambas de cor branca. Trazia os pés descalços pois, segundo ele, era fundamental que se mantivesse em contato com o solo para que pudesse equilibrar as energias. Não que fosse necessário um calçado: ali, naquele plano, a temperatura era sempre agradável, nem quente, nem frio.

- É muito bom vê-lo novamente, irmão! - exclamou a moça, abraçando-o com vontade.

Ele também retribuiu, pousando a cabeça em seu ombro. Embora os pássaros cantassem alegremente além da janela, Luna podia ouvi-lo murmurar baixinho sua prece enquanto acariciava suas costas: ele estava retirando as negatividades que ainda estavam presas ao espírito da moça. Aos poucos, Luna sentiu que a dor em sua nuca retrocedia, diminuindo até se tornar apenas uma pequena pressão. Sim, irmão Anselmo poderia operar verdadeiros milagres!

Mesmo após diversos regressos como este ao longo de quase quatro séculos, era comum que Luna trouxesse algum "resquício" de antes de sua partida do plano material. Se ela fosse violenta, normalmente acordava com algum incômodo. Nas primeiras vezes, sentia todas as dores anteriores ao momento da morte, acordando ali imersa em aflição. Com o passar do tempo e a orientação firme e amorosa de irmão Anselmo, Luna havia aprendido a libertar-se com cada vez mais facilidade da matéria. Aquela dor em sua nuca havia sido resultado de uma mala que se desprendera do compartimento de bagagem, acertando-a com violência justamente naquele local que agora apenas pulsava ligeiramente, ceifando a vida naquele corpo antes que a aeronave se chocasse contra o mar.

Entre os efeitos colaterais no início de cada missão ou as aflições nos últimos momentos da vida terrena, retornar àquele plano sempre representava um grande alívio.

De Luz e De Sombras - DEGUSTAÇÃOWhere stories live. Discover now