C1- Lágrimas na chuva.

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-Como você tá?

-Pensei que fosse nítido...

-Você tá chateado comigo mano?

-Não guardo rancor.

-Por que tá agindo assim então?

-Não to assim de jeito nenhum.

-Cara... Me desculpa tá? Eu perco a cabeça quando fico com raiva.

-Não é sua culpa que eu esteja aqui.

-Talvez seja.-Sussurrou Loyal, talvez era só um pensamento gritando mais uma vez.

-Claro que não.

-Se eu não tivesse feito você ir embora aquela hora, você não teria sido atropelado.

-Não é sua culpa ter sido atropelado.

-Se eu tivesse prestado a atenção naquele carro.

-Não é sua culpa não ter prestado a atenção.

-Se eu não estivesse pensando em meu pai.

-Eu não vou repetir.

-Ok...

-Loyal. Eu só quero que faça duas coisas. A primeira é, não entre em pânico quando eu sair daqui, não é sua culpa. A segunda é, não me pergunte o motivo de eu ter te pedido isso, quando eu sair daqui, garanto que você vai entender...

-Do que você tá falando?

-Da minha vida.

-Você não morreu mano, fica calmo.

-Quem dera fosse tão simples assim.

-Claro que é.

-Só não entre em pânico.

Silêncio pairou ali por minutos inteiros. Não foi estranho. Eles tinham amizade o bastante para não se incomodarem mais com a falta de assunto, só que dessa vez, assunto era o que não faltava, mas simplesmente decidiram ficar calados, até que Loyal resolveu destruir esse inexistente gelo, mesmo sem entender o que seu amigo acabara de dizer exatamente.

-Eu nunca te vi nele também.

-No que?

-No maldito pesadelo. Nunca te vi nem mesmo correndo de um lado para o outro.

-Sério? -Disse ele desproporcionalmente preocupado.

-Ele disse que só eu podia impedir.

-Quem disse?

-Não sei... A voz... Henrrique. É a mesma voz do meu pai.- Loyal se virou para Henrrique, admitindo algo que preferia fingir que não era verdade.

-Por que não faz, seja lá o que ele pede?

-Não sei o que ele quer que eu faça.

-Então ferrou né. Vai todo mundo ser engolido pela droga de um buraco negro.-Riu Henrrique pela primeira vez ao lado de Loyal, após o ocorrido.

-É... A droga de um buraco negro.

-A internet já sugou a gente a muito tempo, só que invés de dor e sofrimento, a gente ganha ódio e mentira...-Disse Henrrique.

-Ha, mas não compara. A gente tem os memes pra aliviar.

-E Netflix.

-E Youtube.

-E mais memes.-Por fim completou Henrrique.

-"C tem paciência mano"? -Engajou Henrrique quase sem terminar a frase rindo. Era uma estranha piada interna que eles tinham juntos. Provavelmente algum meme que os marcou.

-Quando você recebe alta? -Perguntou Loyal após longos segundos de risada, que ele tanto precisava.

Henrrique por algum motivo parecia aflito com a pergunta.

-Por mim, tanto faz. - Disse mudando seu semblante para algo mais sério e talvez triste, forçando um sorriso ao dizer- Você já viu a enfermeira? Ou melhor, você já viu a gelatina que eles servem? Não entendo as reclamações sobre a comida dos hospitais, só podem ser de pessoas que nunca as provaram...- Continuou com um tom falso de animação na voz que Loyal sabia identificar muito bem se tratando dele.

Loyal riu levemente olhando para seus calçados ignorando os sinais de estranheza.

-Você é um babaca. -Disse o mesmo enquanto olhava pra Henrrique esperando qualquer reação real.

-Admito, sou um pouco babaca de vez em quando... Mas quer saber? Todo mundo é babaca as vezes...

-Como uma piada idiota sobre a enfermeira pode se transformar em uma conversa profunda?

-Como você consegue transformar conversas profundas em ironias?

-Como você consegue;

-Chega.-Interrompeu Henrrique.

-É, já chega...- Admitiu Loyal.

-Falou cara. Vou nessa, ok?

-Vai la.

A chuva insistia em continuar incessantemente, mantendo um frio aconchegante no ar que Loyal amava respirar fundo até sentir aquele inconfundível perfume.
Loyal sentia-se mais leve, o que contradizia suas roupas ensopadas e frias. Sua jaqueta não mais o aquecia, porém isso nem por um segundo o incomodava. O que lhe incomodava era outra coisa bem menos óbvia, ele refletia sobre uma estranha conversa que ouviu enquanto saía do hospital.
Foi no caminho de volta pra casa que ele percebeu algo destrutivo.

É difícil enxergar lágrimas na chuva torrencial.

Agora tudo fizera sentido para ele. Ao sair daquele lugar ele notou a enfermeira tristemente conversando com a mãe de seu amigo.
-"Deseja manter isso em segredo?"
-"Por favor, não quero que ninguém saiba disso até que estejamos preparados para compartilhar."

Seu amigo não era visto correndo no sonho pelo simples fato de que não podia mais mover suas pernas.

Chuva TorrencialWhere stories live. Discover now