Prólogo

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Christina se foi. Ainda consigo escutar o apito do medidor cardíaco em minha cabeça. Parece um filme de terror, no entanto não é ficção, por mais que eu finja ser. Esta, infelizmente, é a minha realidade. Chris não foi a primeira a partir, nem a segunda, mas a quarta. Ross, Lilly e Megan também se foram. Pergunto-me quando será a minha vez.

Mamãe se preocupa comigo, com meu ânimo. Ela sabe que não é fácil ver a vida mudar completamente em questão de meses. Nunca fui das mais populares na escola, todavia, sempre me considerei uma adolescente comum. Vivia como qualquer outra pessoa, pelo menos, eu acreditava que sim.

Tinha meus amigos, paixonites, notas vermelhas e as matérias preferidas. Agora tenho enjoo, mal-estar e angústia. Sinceramente, nem sequer os amigos eu tenho mais. Acredito que minha mãe tente entender, entretanto, é praticamente impossível saber pelo que passo. Nem mesmo eu sei. É um vazio constante.

Os olhos grandes e verdes de minha mãe me vigiam. Eles passeiam agressivamente pelo meu rosto exausto. Sei que ela me analisa. Eu queria olhá-la com serenidade e transmiti-la algum alívio, mas, com as lágrimas ágeis nas bochechas, mirar qualquer parte que não seja minha mão presa ao acesso do soro é torturante.

— Florence, minha filha, está mais abatida que o normal... — ela tenta partir o silêncio.

— Deve ser o sono. — minto. — Estou cansada. — de certa forma, isto é verdade: estou cansada de tanto sofrimento.

— Você está triste pela Christina, não é?

Essa só pode ser uma pergunta retórica.

Minha mãe sabe o quanto eu e Chris éramos próximas. Chegamos à ala pediátrica na mesma época, odiávamos as mesmas comidas e assistíamos às mesmas séries. Era como se ela fosse eu em um corpo diferente. De todas as minhas amigas, tanto as daqui do hospital quanto às da escola, Christina Sharman era a melhor. Neste momento, ela só existiria nas minhas lembranças. Até a minha vez de tornar memória alheia.

— Alguém me mata logo, pelo amor de Deus! — disparo, olhando, pela primeira vez hoje, para a mamãe; em minhas expressões é possível ver o grito de súplica.

— Não diga isso. Você é muito nova para morrer. — quase como num golpe, ela salta em direção ao leito e segura minha mão desconectada. — Ainda tem muita vida para viver. Você é forte, filha, só está... em uma situação delicada.

— 2014 e você ainda usa eufemismo. Mãe, eu tenho câncer. Vi, de um em um, meus amigos se afastarem de mim, os que ainda ligam o fazem por pena. E... minhas novas amizades morrem. Tudo aqui é sem vida. Eu já estou morta, você finge que não vê.

Os soluços de minha mãe interrompem meu discurso. Mais do que sofrer, odeio ver a minha mãe chorar. A pior parte: o motivo sou eu. Não sei ao certo se ela está a se debulhar pelo meu estado crítico ou por acreditar nas minhas palavras. De uma maneira ou outra, eu me odeio por tê-la magoado.

Sem dizer nada, envolvo meus braços ao redor de seu pescoço e entrego-me às lágrimas. Ela me abraça de mal jeito pela minha posição no leito e murmura algumas palavras indecifráveis.

Uma sequência de batidas ao vidro da porta nos separa. Entre a fresta, uma das enfermeiras coloca o rosto e avisa:

— Srta. Brown, tem visita no saguão. Um garoto da internet veio conhecer as crianças. Se quiser ir, fique à vontade.

— Quem? — pergunto, curiosa.

Nenhum famoso costuma vir aqui. Pelo menos, não nestes 73 dias que estou em observação.

— Shawn Mendes.

Nunca ouvi falar.

— Está bem, obrigada. — forço um sorriso, enquanto ela fecha a porta novamente.

— Acho que você deveria ir, Flor.

Mamãe tem razão. Se eu ficar aqui mais um segundo, é capaz que me atire desta maca com a cabeça no chão. Levanto-me sem dificuldade, pego a touca de crochê que uma senhora deu, colocando-a rapidamente na cabeça, e arrasto o suporte do meu soro.

— Você não vem? — indago a mãe, quem assente.

Ela se ergue e, prontamente, abre a porta. Saio, a carregar meu soro companheiro. Juntas, entramos no elevador e seguimos ao térreo. Quando as portas metálicas se abrem, uma voz aguda mas ao mesmo tempo rasgada alcança meus ouvidos. É diferente do que estou acostumada a ouvir. Um diferente bom. Mamãe e eu nos entreolhamos e sorrimos, aproximando-nos das pessoas do lado de fora.

Todos da pediatria estão sentados em círculo no lobby. Há crianças que nunca sequer vi aqui. Cada uma de um tipo, com uma razão diferente para estar aqui, contudo, algo nelas é unânime: todos os olhos estão presos ao garoto de casaco vermelho e violão no colo.

A voz distinta. O carisma.Os celulares apontados a ele. Aquele, com certeza, é o garoto da internet: Shawn Mendes. 

Por Um FioWhere stories live. Discover now