Ainda não é o momento...

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Fechei o diário com a chave e coloquei no guarda roupas escondido em baixo das felpudas e cheirosas toalhas de banho e fui até a janela. E me perguntava para que esconder a chave, se não havia nada de mais em meus escritos? O frio parecia dar uma trégua, ainda que não fosse possível ver a claridade intensa do sol... Morávamos em uma casa confortável que a empresa cedera para o meu pai... Porém com a separação ele foi morar em um pequeno apartamento.

Caminhei até a porta e lentamente comecei a descer os degraus. Uma mistura de náusea e tontura tomou conta de meu corpo. Apoiei-me mais uma vez no corre mãos para que Olga não percebesse. Ela estava na cozinha preparando o café da manhã. O cheiro de torradas com manteiga havia tomado a sala e sinceramente tudo o que queria era não sentir cheiro algum...

— Bom dia Ana, querida! Como se sente?

— Oi Olga, bem...

Olga que era brasileira e morava em Washington há muitos anos, trabalhava duas vezes por semana em nossa casa. Mas nessa semana, ela viera todos os dias. Minha mãe não estava segura em me deixar sozinha.

Não demorou muito pra perceber que eu não estava bem, ela veio até a sala esquecendo-se dos pães na torradeira.

— Ana, você está muito pálida! Meu Deus, eu vou ligar pra sua mãe...

— Não Olga... Vai passar... Por favor não liga pra mamãe... Olha vai passar tá, eu só preciso respirar um pouco... E me dá um copo d'água fresca, por favor.

Olga correu pra cozinha, encheu rapidamente um copo com água e umedeceu um pano.

Voltou para a sala e com o pano, deslizava toda minha fronte, revezando com a nuca. Bebi um pequeno gole da água que parecia percorrer todo o vazio do meu estômago que não se alimentara de quase nada no dia anterior.

Olga pegou o aparelho e colocando no meu braço, aferiu a pressão.

Retirou o aparelho preocupada:

— Sua pressão está baixa de mais. Vou ter que avisar sua mãe, menina.

Nesse momento eu já não tinha mais forças para reivindicar qualquer coisa. Sentia meu corpo desfalecer na poltrona.

Como se farejasse algo errado comigo, Tom veio desesperado e pulando no braço da poltrona, lambia as minhas mãos como se quisesse amparar-me. Mas eu já não podia retribuir os afagos do meu amigo. Minha face provavelmente tornou-se mais pálida e meus olhos sem força fecharam-se fazendo Olga desesperar-se:

— Menina, Ana, fale comigo! Meu DEUS Ana, acorda!

Correu ao telefone e ligou para a emergência, em seguida ligou para minha mãe.

Sabe aquele dia em que sua vida simplesmente vira de cabeça pra baixo, literalmente!

Foi assim que aconteceu. Durante o caminho que a ambulância percorreu e que me pareceu pequeno eu só conseguia pensar uma coisa: Eu preciso viver!

Ao chegar ao hospital semiconsciente, pude perceber a movimentação a minha volta e então ficou claro, ali, que algo muito sério estava acontecendo comigo.

As vozes se misturavam no corredor, enfermeiros e recepcionistas gritavam em tom estridente e robotizados de forma que eu não conseguia entre o medo de não conseguir me mover e nem abrir meus olhos entender o que estava acontecendo. Ouvia o som das rodas da maca deslizando provavelmente por um corredor muito branco e com portas que se abriam e fechavam o tempo todo. De repente, escuridão e o silêncio.

Era como morrer...

Não sei por quanto tempo continuei nessa inércia. Mas pouco a pouco a atmosfera do lugar voltava a vida e acho que eu também.

Os sons voltavam a invadir meus ouvidos. E a escuridão dava lugar a uma fumaça espessa... De repente me vi de pé em um lugar totalmente diferente de tudo que já tinha visto... Parecia o alto de uma montanha, a temperatura era muito agradável e os sons se misturavam quase que formando uma suave melodia... Era uma experiência única! Um longo caminho entre folhagens umedecidas por gotículas que pareciam ter caído sobre elas minutos antes de eu chegar até aquele lugar. Já nem me lembrava do que havia acontecido a pouco. A fumaça foi evaporando e uma paisagem começou a ser desenhada delicadamente... Como se um artista, o mais renomado artista estivesse pintando uma tela bem na minha frente, uma tela gigantesca. Os raios de um sol tímido abraçado por nuvens escuras e o pouco da fumaça que sobrara agora se misturava a um tom dourado...

O caminho seguia até um ponto de luz, uma luz muito forte. Era quase um convite a desvendá-la... E eu caminhei... Aos poucos meus pensamentos como flaches recobravam a memória. A ambulância... A maca no hospital, o som dos aparelhos, as conversas... Tudo se misturava em minha cabeça... E eu continuava a caminhar. Num certo momento parei subitamente... Um homem estava parado a me observar. Não conseguia visualizar seu rosto, apenas o vulto. Estávamos a uma distância de aproximadamente trezentos metros... Não sou muito boa nisso(Nesses negócios de medidas), mas acho que é isso.

Parei e fiquei alguns instantes olhando em sua direção... Ele estava estático. Não fazia nenhum movimento, um sorriso, um aceno. No mesmo instante uma luz flutuante, uma espécie de bolha gigante de sabão e com muita luz dentro começou a se aproximar de mim... Confesso que senti um pouco de medo, mas eram tão lindas as cores que se fundiam dentro dessa bolha que tornava-se quase hipnotizante... Ela passou por mim... Por todo meu corpo e era como se penetrasse cada parte do meu ser... A fragrância que trazia era algo que eu jamais havia experimentado. Era algo parecido com a lavanda, me trazia lembranças da infância. De quando mamãe penteava meus cabelos após o banho e passava um pouquinho de sua colônia. Depois me contava histórias e esperava que eu pegasse no sono... Só assim deixava meu quarto. Lembrei do sorriso do meu pai, do seu cheiro. Por que se separaram, eram um casal tão lindo!

O homem continuava inerte a me observar.

Quem seria ele? Será que morri?

Caminhei mais, na intenção de conseguir me aproximar daquele homem, mas a impressão que eu tinha é que quanto mais eu me aproximava, mais ele se afastava. Então de repente me vi correndo em sua direção. Ele era o único ser que tinha avistado naquele lugar, a única pessoa que poderia me ajudar.

Mas como um furacão que vem e carrega tudo a sua volta, aquela bolha voltou numa velocidade assombrosa e uma explosão de claridade se fez. O homem então ficou visível e eu fiquei chocada com o que vi... Era um rapaz em volto de uma luz tão ofuscante que quase tive que fechar meus olhos. Ele era alto, muito alto e os cabelos e barbas avermelhados destacavam a pele branca. Vestia camiseta preta de mangas longas... E inacreditavelmente tinha asas... Asas! Como as asas de um anjo! Os meus olhos se encontraram com os dele e era com se estivéssemos nos aproximando, como se estivéssemos muito próximos. Com uma voz doce e suave ele me disse num sorriso encantador:

— Volte Anamabile, ainda não é o momento...

Num gesto muito rápido com as mãos, algo como quisesse me empurrar. Me empurrar de volta e foi exatamente essa a sensação que eu tive. Numa velocidade incomparável a pior montanha russa, todas as coisas começaram a se passar rápido de mais  à minha frente. Via ambulância, o hospital, os rostos embaçados, a montanha, as folhas secas, a bolha colorida... O anjo! E de repente tudo escureceu! Estava eu totalmente inconsciente... Perdida no nada... E a frase que não parava de ecoar em minha mente: Ainda não é o momento...

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