Capítulo 8

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  — Parou a reunião por causa de uma garrafa, Mariana? — repreende minha mãe olhando para o lixo.
  Atrás dela, Afonso estica o pescoço para ver melhor.
  — É o senso de urgência inútil desses jovens, Luana.
  — Cala essa boca nojenta — disparo, recebendo seu olhar de desprezo e um severo da mulher.
  — Desde que isso é entre eu e minha filha, Afonso, mantenha suas opiniões pra si.
  Aponto com veemência para a lixeira.
  — Não é uma garrafa qualquer, mãe.
  Ela observa o objeto mais uma vez.
  — Hum... é sim.
  Luana se abaixa para pegar a garrafa e eu a impeço do mesmo jeito que Rodrigo fez comigo.
  — Não! Pode ser evidência. — Tento gesticular com a cabeça e o olhar. — Tu sabe... por causa daquilo. Painho nunca comprava água assim sabendo que tinha aqui.
  Ela reconsidera silenciosamente, por fim, se afasta.
  Afonso, que havia parado por um tempo para ouvir, bufa.
  — Os investigadores já vieram e checaram tudo. — Sob os meus protestos e de Rodrigo, ele resgata o objeto do lixo. — Vou jogar em outro canto, quem sabe isso para de alimentar essa tua paranoia. Já tá virando loucura. Luana, vou retomar a reunião em dez minutos.
  Ele dá as costas e começa a caminhar para a saída.
  — Deixe a garrafa, Afonso.
  O homem parece incrédulo.
  — Você não vai dar ouvidos pra essa adolescente.
  — É minha filha e tão determinada a dar algo de si pela investigação como todos nós. Se ela acha que é útil, então tem um bom ponto a ser levado em consideração.
  O novo presidente da FunToy dá um passo em nossa direção e fala diretamente à sócia.
  — Há um motivo, Luana, para gente com vínculo afetivo pisar fora de trabalhos que envolvem razão e frieza. Observando bem, é pela emoção que tua filha tá agindo, qualquer um de fora pode ver isso. — Ele olha para Rodrigo. — Não concorda?
  O estudante se abstém de responder, mas em seu olhar era possível enxergar o lado da balança pendendo para o argumento de Afonso.
  Porcaria de visão cirúrgica. Claro que para ele faria sentido, afinal, quem tinha estômago para operar uma cirurgia delicada em pessoa próxima?
  Se fosse eu, ao primeiro apitar anormal de máquinas travaria no choro.
  — Estamos num beco sem saída, prefiro não perder nada. Essa garrafa pode nos ajudar a traçar os últimos passos dele. — Os olhos da minha mãe ficam úmidos. — Não aguento mais um dia sem resolução, eu preciso de um final. Preciso dormir bem.
  Os dedos dela tremiam ao falar e abraço minha mãe de lado.
  — Solte a garrafa — insisto.
  Afonso segura o objeto por quase um minuto antes de soltar. A garrafa cai no chão com um barulho meio agudo do plástico amassando de leve.
  O presidente mal ouve o agradecimento da minha mãe ao mesmo tempo que sai da sala.
  — Babaca — disparo para suas costas.
  A mão com unhas roídas dela me tocam o braço.
  — Vou chamar Rômulo para buscar a garrafa, fique de olho para que ninguém mais mexa — concordo em silêncio. — E seja mais compreensiva com Afonso. Ele tá passando por muito também com a mudança e o luto.
  A minha boca entreabre.
  — Ele sempre me tratou desse jeito.
  — Mesmo assim, todos estamos num mal momento. Ajude a melhorar o ambiente. Obrigada.
  Ela nos deixa para cumprir o que havia dito e solto o ar.
  Resmungo as mesmas palavras que ela disse num tom afinado.
  — Que se dane — disparo e me volto para Rodrigo. — Eu o odeio desde sempre — explico —, acho que o sentimento é mútuo.
  — Deve ser...
  — Bem-vindo à loucura que se tornou minha vida. Em breve vai se ver ouvindo fofoca e chamando minha mãe de tia Lu.
  — Não vejo a hora — ironiza. O rapaz volta a se sentar. — Parasse mermo a reunião?
  Devolvo o pequeno sorriso de diversão.
  — Nada próximo de um eu protesto, mas fiquei batendo na porta até atenderem. Mainha saiu com uma cara de vou te matar lá de dentro. — Dou risada. — Funcionou, né?
  Dois toques soam na porta e olhamos ao mesmo tempo para lá instantes antes de Mirtes a abrir.
  — Tá precisando de ajuda?
  Alterno o olhar entre ela e Rodrigo, por fim, balanço a cabeça voltando a checar a separação de Rodrigo.
  — Estamos bem, obrigada.
  A secretaria entra na sala e fecha a porta atrás de si.
  — Meu menino completa ano amanhã. João.
  — Quantos anos?
  — Vinte e dois... — os olhos chegam a brilhar conforme continua: —, de muito orgulho.
  — Ele é o do meio, né?
  — Sim, sim — diz, sentando no braço da poltrona onde o jovem está acomodado. — A estrelinha do meio nas minhas Três Marias.
  — É o filho favorito dela — explico a Rodrigo, voando na conversa.
  Mirtes dá risada.
  — Nada disso. Coração de mãe num tem isso de favoritismo.
  — Pela minha experiência... — começo dirigindo um sorrisinho ao visitante. — Tem sim e sou a favorita de mainha.
  Ele se diverte.
  — Como é a sensação?
  Dou de ombros.
  — Normal, me sinto como uma princesinha.
  — Normal — zomba.
  — Seus filhos tão crescendo bem? — me volto para ela. — Eu o vi no velório, parecia sortudo de ter a melhor mãe do mundo.
  — Graças a Deus, minha filha. O sonho de toda mãe é esse, ver os filhos crescerem e bem encaminhados...
  O semblante da senhora fica melancólico por um breve momento, o olhar distancia.
  Rodrigo percebe o humor e se volta para mim.
  — Agora tu tá dizendo que é a filha favorita, mas tua mãe não é isso pra você? — Estreito os olhos para ele. Rodrigo gargalha. — Peguei com a boca na botija.
  — Vive reclamando do abandono, mas tá perdendo essa oportunidade. — Indico Mirtes. — Ok, ela pode não ter favoritismo, mas tem o maior coração do planeta. Se eu sugerir que ela o adote, vai fazer isso sem nem esperar tua resposta. — Completo para a senhora: — Tô errada, Mirtes?
  Seu semblante volta a acender quando observa meu companheiro. Ela apoia uma mão no ombro dele.
  — Oh, meu Deus. Você é órfão de mãe?
  O rapaz nega com a cabeça.
  — Pais separados. Minha mãe foi fazer as unhas quando eu era pequeno demais pra gravar qualquer informação... — ele faz uma pausa rápida. — E nunca mais voltou.
  A secretária o observa por um longo período em silêncio e balança a cabeça.
  — Ah, meu querido, eu gosto de pensar que mães não abandonam por escolha e mesmo depois disso se arrependem. A gente faz muita besteira na vida. — Ela dá de ombros. — Toda história tem dois lados. Chegue em casa hoje e pergunte sobre sua mãe.
  Dispenso o comentário sobre como aquilo cheirava a experiência própria.
  — Inspirada hoje, né? — comento.
  — Só falo do que sei, Mariluz. Só do que sei. — Uma pausa se estende. O barulho que faço ao remexer papéis preenchendo o ar. A secretária se levanta. — Vou-me embora. Deixar a juventude trabalhar.
  Ofereço um sorriso brilhante.
  — Obrigada pela companhia!
  — Valeu — Rodrigo me acompanha.
  O rosto da mulher cintila. Ela para na porta e se volta para nós de novo.
  — Tava certa, Mari. Já adotei os dois.
  Mando um beijo para ela e a porta se fecha. Termino de verificar a pilha e coloco tudo no saco preto.
  — Perfeito — elogio. — Já vou te contratar pra minha assessoria.
  — Quantos meses aguento sem enlouquecer? — solta para ninguém em específico.
  Amasso um papel de rascunho e jogo em sua direção.
  Ele segura a bolinha no ar e lança direto para a lata de lixo.
  Nos entreolhamos estupefatos como se ele tivesse acabado de colocar na cesta uma bola de basquete jogada de costas e no meio da quadra.
  Cruzo os braços.
  — Duvido que consegue de novo.
  — Falar é fácil. Eu te desafio a fazer o mesmo.
  Depois de uma longa encarada, resgato os papéis do saco de lixo. Em segundos, Rodrigo se junta a mim.

DestinadosWhere stories live. Discover now